19
Sep11
O que é que a Tapera tem
Texto de Fernando Boppré publicado na coluna “Penso”, do Diário Catarinense, dia 3 de setembro.
Tapera tem sete tiros no meio da noite. O último a 1h09min da madrugada. Tapera não tem praça pública, parque, coisa alguma para criança brincar. Mas tem igreja de montão, padre e pastor que não acaba mais. Tapera tem mar calmo feito piscina, tem uma, duas ilhas bem bonitas para a gente nadar até lá. Tapera não tem ônibus “amarelinho”, não tem livraria, não tem Tay Cosméticos. Mas é repleta de bem-te-vis mais que vaidosos que se debatem contra os vidros dos carros e das janelas das casas vendo a si próprios num espelho inventado. Tapera não está nos planos das administrações públicas, mas está no Dicionário Aurélio e quer dizer “choça”, “lugar abandonado”. Quem sabe, os governantes conhecem o verbete e decidiram segui-lo a risca. Lá se está para além do abandono, aquém do arrabalde. Tapera está cheia de lajes por construir, abarrotada de pernilongos e águas paradas. Tapera tem gente branca, preta, média com leite (mais o japonês da farmácia) que insiste em ir trabalhar às 5h30min da manhã nas obras e casas de família de toda a cidade. Mas também tem gente outra que trabalha sem nota fiscal, sem carteira assinada, porque vender pó e fumo é operação rápida e rende muito mais do que qualquer trabalho besta (e nem é preciso pegar ônibus lotado e pagar absurdos R$ 3 pela passagem). Museu do nada, cinema marginal, teatro do absurdo, cultura por lá é utopia fora de propósito; ainda assim se faz de tudo porque arte maior é aquela que inventa modo digno de se viver com o pouco que se tem. Tapera é Rua do Juca, o Pedregal, a Barreira e há alguns anos um pedaço de terra sem escritura podia ser comprado por menos de mil reais. Tapera abriga carijós sepultados à beira-mar e homens desempregados que podem pagar suas contas na lotérica que acabou de abrir logo ali. Tapera tem candomblé, umbanda e gente de fé. Tapera tem barbeiro, sorveteria e loja de 1,99. Tem Hot-Dog e X-Camarão delivery. Tapera tem caminhão de lixo que desengatou a marcha, arrancou bruscamente e esmagou o trabalhador da Comcap num muro branco, num sábado de manhã. Por alguns dias, o muro fez-se salpicado de vermelho e a família enlutada ainda hoje veste preto. Morreu sem querer assim como o menino que jogava futebol no campo improvisado e esbarrou na trave que caiu sobre si a rachar-lhe a cabeça. Tapera tem céu cortado por pipas. Tem jogo de futebol em campo de terra, lances geniais que não passam ao vivo no SportTV, brigas homéricas que não chegam aos ringues oficiais. Tapera tem boteco de montão só que lá ninguém aceita Visa. Tem academia de musculação sempre cheia. As ruas não têm calçadas e os pedestres desfilam junto à pista de rodagem disputando espaço com os ônibus verdes alucinados. Tapera tem lajotas que, após a chuva, dançam sobre o mangue. E quando chove um pouco mais, tem inundações que, por sinal, são as únicas certezas por lá, ao contrário dos políticos, que só aparecem de dois em dois anos. Na Tapera, tempos atrás, havia toque de recolher, quando depois do horário noturno estipulado, nem a polícia, nem os bandidos se responsabilizavam pelos civis. Tapera tinha pizzaria, mas hoje lê-se: “Aluga-se quartos”. Quem não gosta de dizer que mora na Tapera, diz que tem casa no Ribeirão. A Tapera não dá “bom-dia” nem “boa-noite”, ela dorme cansada entre ruídos de televisão. A Tapera tem a Rua da Esperança (como em Yellow Submarine, dos Beatles) ainda que poucos acreditem nesta palavra por lá.
29
Jul11
Família não é uma empresa ou como catar coquinhos
Reproduzo na íntegra este belo texto de Fabrício Carpinejar. Penso como ele.
Estava na mesa-redonda da Bienal do Livro do Rio de Janeiro. Ouvi atentamente a palestra de Içami Tiba, colega de painel, que falou de modo elétrico, seguro e convincente.
É um orador no estilo de grande auditório, conciliando humor com exemplos.
Mas, em algum momento, ele disse: “A família é como uma empresa”.
E aquilo me incomodou profundamente. Aquilo me arrancou a audição.
“É na família que forjamos vencedores. Se os filhos não obedecem, não fazem nada, tem preguiça para qualquer coisa, não ficariam numa empresa, é o mesmo processo.”
Caso meu avô Leônida escutasse isso, soltaria um de seus xingamentos prediletos: “Vai catar coquinho e deixar de ser besta”.
A família não é uma empresa. Nem deve ser. Não vou demitir ninguém em casa. O pai ou a mãe não é o que queremos deles, mas o que eles podem oferecer.
Estou de saco cheio de ouvir que uma família deve trazer rentabilidade, organização e competência. A cobrança não fixa um lar.
Na minha residência, cada um tinha uma tarefa. Mas não era uma empresa, ou uma cooperativa. Não fui promovido. Não esperava cargos de confiança. Os irmãos me continuavam.
Quando fui demitido uma vez do serviço, expliquei para minha filha de 4 anos o que havia acontecido.
“O trabalho não me quis mais.”
Ela respondeu bem calma:
“São bobos, fique calmo, será meu pai sempre.”
Eu dependo de um lugar para falir na minha vida. Deixe-me ao menos a família.
Eu posso perder tudo, menos a família. A família é meu despertencimento, a adoração dos telhados, o avental no gancho da cozinha. Nem Deus, nem seus capatazes tiram aquilo que foi desejo. Podem subtrair minha memória, mas guardarei o desejo fora de mim. Em minha mulher.
A família é o único lugar que continuaremos vivendo sem a expectativa de acertar. Mente-se diante da agenda, não de um prato de comida. Precisamos de um espaço para falir, para errar e se debruçar em nossas fraquezas. Já tenho que ser funcional no emprego, no lazer, nas relações com os outros. E agora a sugestão é que trabalhemos também na família. Isso é exploração infantil, isso é jornada dupla, isso é transformar elos naturais em conexões automáticas.
A família depende de uma única coisa: a intimidade. E intimidade não é emprestada, intimidade é não pedir de volta.
A família é o único lugar que me permite ser verdadeiro. É o único reduto de autenticidade. Não vamos colocar a competição dentro dela. Ou encher os nossos filhos de horários e de obrigações para que não pensem bobagens. Eles carecem das bobagens para escolher seus caminhos. Ser ocupado não nos torna importantes; não nos torna responsáveis. Envelhecer é se desocupar para a amizade.
Quando pequeno, não fiz natação, não fiz inglês, não fiz informática, não fiz o raio-que-parta. Eu tinha o tempo livre depois da escola e jogava futebol com os colegas, roubava frutas e brincava na casa dos vizinhos. Voltava para a casa quando a mãe gritava: “tá na mesa!”. A infância é própria para a vadiagem. Quando iremos vadiar de novo?
Se a família é uma empresa, um dia os filhos vão pedir demissão, um dia o pai e a mãe vão se aposentar, um dia os tios vão pedir concordata, um dia o genro vai desviar recursos.
Na família, os laços são eternos e não provisórios como uma empresa. Família não é trabalho, família é experiência. E nunca haverá perdedores na família, mas irmãos e filhos e pais. Eles são a família, não um referencial de realização.
Essa exigência de sucesso na família implica em não aceitar os perdedores. O que são os perdedores senão os mais sensíveis à pressão? Por isso, famílias se assustam com os problemas e escondem filhos alcoólatras, drogados e doentes em clínicas. Sofrem com a cobrança pública. Temem a exposição de seus defeitos.
Família é ter defeitos, é ter fantasmas, é ter traumas. Frustração é não contar com uma família para se frustrar.
Família é compreensão, não um acordo.
Não temos que alimentar vergonhas de nossas vergonhas. Família é onde tiramos os sapatos e deitamos os casacos. Não promoverei reunião-almoço na minha sala. Não afastarei um parente pela malversação. Não solicitarei a restituição das mesadas. Não exigirei que minha filha escolha Medicina ou Direito pela estabilidade. Não condiciono minha paixão a resultados.
Um patrão nunca será um pai. Não procuro disciplinar meus filhos, o amor é a mais suave disciplina. E o abraço é a minha desordem.
25
Jun11
Quando se vê, já são seis horas…
Um poema de Quintana, publicado no Diário Catarinense em crônica de Mário Pereira – tive o prazer de conhecê-lo há poucas semanas – e enviado pelo Fernando Evangelista.
“A vida são uns deveres que trouxemos para fazer em casa./ Quando se vê, já são seis horas…/ Quando se vê, já é sexta-feira…/ Quando se vê, já é Natal…/ Quando se vê, já terminou o ano…/ Quando se vê, não sabemos mais por onde andam nossos amigos…/ Quando se vê, perdemos o amor de nossa vida…/ Quando se vê, passaram-se cinquenta anos./ Agora é tarde demais para ser reprovado./ Se me fosse dada, um dia, uma oportunidade, eu nem olhava o relógio./ Seguiria sempre em frente, e iria jogando pelo caminho a casca dourada e inútil das horas./ Seguraria todos os meus amigos, que já não sei onde estão, e diria;/ Vocês são extremamente importantes para mim.”
Mário Quintana
22
Jun11
Queria escrever
Recebi e-mail do Fernando Evangelista e compartilho com a satisfação de ler um bom texto de Vanessa Barbara:
O Instituto Moreira Salles acaba de lançar uma nova edição dos seus Cadernos de Literatura Brasileira. O número 26 da série, iniciada em 1996, é dedicado a Rubem Braga, o maior criador da moderna crônica brasileira. Em meio às homenagens prestadas pelo IMS ao cronista, o blog do ims convidou os escritores Vanessa Barbara, Antonio Prata, Chico Mattoso e Cecília Giannetti para criar um texto à maneira de Rubem Braga. Abaixo, segue a colaboração de Vanessa Barbara.
Queria escreverQueria escrever um texto bonito, algo que a moça das verduras pudesse levar consigo no ônibus após um dia sem couves, e que ela fosse reler de mansinho e recortar para as amigas. Um texto sereno, bonito pra burro, que fizesse marejar os olhos de um velho coronel, por um momento arrependido de nunca ter sido jovem e nem trapezista – e de ter dispensado sua primeira namorada, só porque era hippie e não tinha todos os dentes.
Que seja tão inesperado e forte quanto um soluço, que faça despertar as tartarugas e sorrir os banguelas. Que o porteiro, quando ler, pense no seu jardim esquecido, em seus netos adultos e em uma vida só de reprises do Pica-Pau.
Um texto bonito para um determinado pombo, que, atrapalhado, se enroscou num fio de eletricidade e não saiu mais de lá. Isso foi num cruzamento de avenida; o pombo fez que ia conseguir escapar e não escapou, atraindo em minutos uma turba de curiosos, guardas de trânsito, senhoras palpiteiras, vendedores de mata-moscas. Quando fecharam o trânsito para socorrer a ave, um jovem policial militar ergueu a escada do caminhão de bombeiros, repassou o plano e foi cumprir o seu dever cívico; uma senhora ao meu lado exclamou, plena de gravidade histórica: “Olha só, fiquei toda arrepiada”.
Um texto para esse pombo, resgatado do fio de luz sob os aplausos do povo, ainda trêmulo e um pouco tímido, um pombo que possivelmente não terá maior momento de glória nessa sua vida emplumada. Um texto para os que estavam assistindo a tudo e entenderam, na hora, que havia quem passasse a vida inteira em busca de um momento como este, em que um pombo nervoso sai carregado pelos braços do povo, tendo mobilizado dois batalhões da PM e um destacamento especial do Corpo de Bombeiros. E havia gente nos beirais das lojas e nos meios-fios, e os funcionários do metrô dando uma pausa no trabalho, e alguém rezando em voz baixa.
Um texto bonito para a minha rua, para os meus amigos, para o cobrador do 1744 e para todos aqueles que dormem cedo demais. Algo bem tolo, desnecessário, que lembre poemas rimados, que agrade o vizinho cansado, o professor de astronomia, as verdureiras, os militares e os pombos que se enroscam em fios de luz.
Um texto bonito, mas tão bonito que você não possa deixar de lê-lo, ainda que, numa noite fria, ele precise se revelar misticamente numa sopa de letrinhas, todo arranjado em estrofes e ervilhas de pontuação, e você pense nele como pensa em gorrinhos. Um texto tão bonito que o faça botar uma roupa estranha, vestir o chapéu e se sentir instantaneamente aquecido, saindo à rua com a determinação trêmula de um pombo.
Um texto tão bonito que o faça voltar pra casa, meu amor, sob o triste cochilo da lua.
* Vanessa Barbara nasceu em 1982, em São Paulo. É jornalista, tradutora e editora do blog A Hortaliça. É autora deO livro amarelo do terminal (Prêmio Jabuti 2009 na categoria Reportagem), O verão do Chibo, em parceria com Emilio Fraia.
02
Apr11
Recordações de Ramsés
O nome dele é Ramsés Antunes da Luz. Atualmente, psicólogo e professor universitário. Foi meu contemporâneo durante o tempo que passei no jornal O Estado no fim da década de 80 – ele como diagramador, eu como revisor e, depois, repórter de polícia e de geral. Acabo de ler a bela crônica que ele publicou no Facebook, no grupo Reencontro O Estado, e republico abaixo. Me identifiquei demais com o que ele retrata nessas linhas. Também vivi a deliciosa sensação com que ele apreciava a fauna humana do jornal. E me sentia gratificado com o aprendizado diário daquele convívio. Com a palavra, Ramsés.
Olá membros desta nostálgica comunidade. Se tiverem a pachorra de ler, apresento-lhes abaixo uma vívida crônica daqueles tempos.
No primeiro dia de setembro de 1985 fui apresentado a um mundo novo. Era quartanista de psicologia com parcos 21 anos de vida, um moleque em busca de um sentido para tudo. Burraldo, tímido, pobre e sem noção de medida. Justamente conseguira um emprego no Jornal “O Estado” (indicação do Ronaldo Paiva) para custear a vida de estudante, visto estar sozinho na ilha (apenas mais um irmão paupérrimo), recém desencilhado da família no Paraná. Virara, na marra, às custas de muito treino sobre paicas (e esporros do Heron adjuntos), um diagramador.
Primeiro emprego com carteira assinada. Salário indigno até mesmo para um estudante. Porém, para um imaturo (porém fascinado) observador do comportamento humano não era apenas qualquer Jornal, mas um espaço que trazia o deleite de reunir o maior número possível de profissionais cultos, eruditos, lidos e repletos de ideais, como eu jamais vira em minha interiorana vida. E olha que eu estudava na UFSC. Mas na Universidade Federal os intelectuais estavam dispersos e quase não dialogavam comigo. Meus doutos professores da UFSC ministravam suas teóricas aulas e iam embora. Porém, na redação não! Lá meus contagiantes “tutores” brigavam e xingavam-se mutuamente. Ajudavam-se e emocionavam-se. Juntos labutavam e, neste obrigatório espaço de convívio, discordavam e mantinham posições ideológicas. Viviam o que faziam. Idéias fresquinhas produzidas descortinavam-se perante mim. Eu não cabia em meu deslumbramento. Orgulhava-me em auxiliar, mesmo que modestamente, no meu canto, calculadora e régua em punho, aqueles “contistas” a registrar o acontecido em SC, Brasil e no mundo, cada um do seu jeito. Alguns apenas um pouco mais velhos que eu, mas todos para mim “senhores da palavra”. Era extremamente incitante às letras.
Dissonante da maioria não me importava em trabalhar nos finais de semana. Liturgia aliciante do cargo. Leitor voraz, aproveitava e lia e relia textos gostosos que diagramava… e aprendia. Mas uma aprendizagem do lado de dentro, perto de quem fabricava a narrativa. Vivendo com eles a sua vida. Aprendendo sobre a construção da informação vindo da realidade e a forma de contá-la. Comparava estilos, aprimorava meu gosto. Não poucas foram às vezes em que, curioso, indagava-os sobre assuntos que beiravam as entrelinhas da reportagem. Também foram diversos os momentos em que faltou-me a audácia necessária para ir ter com um colunista sobre uma opinião publicada da qual discordava, seja no segundo caderno, seja em economia, política ou esporte. What a fucking chicken!!! Tão rico o teria sido.
Verdinho, cultivei paixonites secretas inúmeras vezes vidrado por figuras femininas, repórteres e editoras, as quais desfilavam ante minha mesa. Para mim, representavam um ideal de mulher: um mix de intelectualidade, independência, maturidade, e feminilidade. Eu estava adolescendo tardiamente, porém da melhor maneira possível. Só na maturidade o soube.
E permaneci por lá diagramando até o dia 29 de dezembro de 1987 quando, fascínio encerrado, formei-me no curso de psicologia. E em 1989 comecei carreira docente (primeiro na UFSC e depois em outras instituições). No “O Estado” foram dois anos e pouco de contato com um ambiente intelectual fervilhante, energético, desafiador, cru, saudável, algumas vezes doído, extenuante e recompensador, o qual modelou-me de forma indelével (o período consta em meu Currículo Lattes). Estive ali por apenas dois anos, entretanto neste curto espaço de tempo fui cúmplice de histórias inenarráveis, a maioria como espectador ou mero ouvinte.
Mas saí de lá. Vida que segue. Formei-me psicólogo, mestrado na Federal e doutorado inconcluso na Califórnia. Baú trancado e jamais aberto. Talvez porque depois disto nunca mais tenha professado o jornalismo. Primeira e última vez. Tanto é que, vivendo no bairro João Paulo, obrigo-me a passar quase todos os dias pela SC 401 e confesso que não comovia-me em ver os escombros do que foi um dia foi o mais lido. Segui carreira como professor e consultor em psicologia organizacional. Uma vez apenas, de passagem pelo local, contei para minha filha de 18 anos que outrora eu trabalhara em um jornal que existia ali. “Sério, pai? Mas o que um professor de pós-graduação tem a ver com isto?”
Entretanto, eis que semana passada Paulinho Scarduelli, em um encontro casual em um avião, conta-me sobre esta seleta comunidade e da avidez de seus membros por um reencontro, mesmo que virtual. E assim, tragado pela curiosidade, tenho lido no feicebuque histórias aqui e visto fotos ali (uma minha inclusive todo de branco). Senti-me como se adentrasse num sótão empoeirado e este pequeno pedaço de vida totalmente esquecido por 25 longos anos aflorou, como se uma grande rolha de pedra tivesse sido removida. Penso que reminiscências ajudam a resgatar a nós mesmos, o que fomos e o que somos e o jeito como fomos construídos. Por esta razão exponho agora neste sábado de sol, nestas mal traçadas linhas, a minha perspectiva sobre “o mais lido”. E confesso que venho remoendo sobre aquele período esta semana toda tentando lembrar-me de faces, nomes e pequenos causos. Entretanto, lamento informar que minha memória do período abarca tão somente uns 15 ou 20 nomes. Talvez o tempo e o inconsciente trabalhem juntos. É isto! Perdoem se estendi-me em demasia.
20
Mar11
Reencontro do “mais antigo”
A Lena Obst criou no Facebook um grupo para reunir os colegas jornalistas que passaram pelo jornal O Estado. “O mais antigo”, como era conhecido o finado periódico, marcou história no jornalismo de Santa Catarina. Foi também espaço para muitas histórias que até hoje rendem risadas. Naquela redação, onde hoje está o prédio da Casa Cor, foram geradas reportagens inovadoras, fotos belíssimas, diagramações criativas, linguagens experimentais, crianças, casamentos…
Passei pelo “mais antigo” entre 1987 e 1989, levado pelo amigo Frank Maia para a revisão. Aquele universo era cintilante aos olhos de menino de 21 anos. Numa salinha minúscula, nos revezávamos passando olhos de lince sobre os textos dos colegas. O dicionário era nosso vício e nos divertíamos apostando cervejas com a grafia correta das palavras. Guardo com carinho os bons momentos com Frank, Joca Wolff, Giane Severo, Edson, Chica, Mara, o saudoso filósofo anarquista Ricardo Carle (que morreu em 2006 em Porto Alegre, em consequência de sequelas de um atropelamento sofrido em 2000), todos capitaneados pelo grande poeta Ademir Demarqui.
Depois fui ser repórter na editoria de Polícia, com o Ricardo Carle como subeditor e o Carlão Paniz editando. Às vezes fazíamos reunião de pauta na lanchonete/boteco que ficava nos fundos do prédio, onde se conversava de futilidades a profundidades entre um gole e outro. Em seguida passei à reportagem de geral, editada pela Lena durante um tempo. Ainda lembro como se fosse hoje da primeira lauda que escrevi como repórter, copidescada pelo gentil, mas rigoroso Ademar. Ele sentava ao meu lado e ia comentando as bobagens que eu redigia, assinaladas em caneta vermelha. Será que ainda se faz isso nas redações – veteranos ajudarem os colegas “focas”?
O barulho dos teclados das Olivettis e das Remingtons soava como música, em meio às conversas em voz alta, ao som do telex cuspindo despachos das agências de notícias, às tiradas engraçadíssimas do chargista Bonson, à entrada e saída dos fotógrafos com suas bolsas de equipamentos pesados, aos fragmentos de entrevistas por telefone (era ainda o tempo em que se discava). Num canto, Fábio Brüggemann acompanhava a diagramação do suplemento infantil Estadinho. Noutro, Bento Silvério apurava as notícias políticas (falecido precocemente, hoje é nome do casarão da Lagoa). A risada do brilhante colunista Beto Stodieck enchia o ar.
Fauna riquíssima, inclusive com mascotes. Tinha uma cachorra (alguém lembra o nome?) que costumava ficar na casinha do vigilante e era querida por todos. Certa vez, uma circular da direção estabeleceu, sisuda, que a cachorra fulana estava proibida de permanecer naquele local no horário de expediente.
A iniciativa da Lena destapou em mim uma avalanche de lembranças, e olha que só fiquei lá por dois anos. Imagina o que os colegas têm pra contar. Quem sabe um dia tudo isso vira livro – não conheço ninguém mais capacitado pra organizar isso que o grande colega jornalista e historiador Celso Martins, que, aliás, acompanhou em seu blog o descaso com que esse patrimônio histórico de Santa Catarina foi abandonado pelo proprietário do jornal. O Estado fez a crônica de um período riquíssimo na história de Santa Catarina e de Florianópolis. Foi uma grande escola de experimentações para muitos jornalistas e escritores. Acompanhei de longe sua lenta decadência, contemporânea da chegada da rede RBS a SC. Espero ler este livro um dia. Enquanto ele não sai, com certeza o grupo vai render muitos bons papos de boteco.
24
Jun10
No mesmo time
Da Alemanha, Nane comenta o gol de Özil.
Lamentavelmente ando sem tempo para acompanhar os jogos da Copa, muito menos para pensar em comentá-los, por mais agradável que sejam estes fenômenos sociais, capazes de movimentar o mundo. Mas a partida de ontem merece dois minutos de atenção:
Ficou gelado o país durante o dia todo. Gelado, silencioso e tenso. Só mudou de cara quando o narrador da rádio italiana, na pizzaria aqui perto e provavelmente em todas as pizzarias do país, anunciou o gol do turco Özil, dois minutos antes da televisão. Junto aos gritos, abraços e apertos de mão. Abraçaram-se turcos e o restante dos habitantes deste país, como se este fosse o motivo que faltava para chegar bem perto um do outro, se olhar nos olhos e se surpreender com a revelação: estamos jogando no mesmo time!
Abs,
nane
03
Feb10
Navegações da infância
1972. Meu irmão André (à direita) e eu brincando sobre um bote salva-vidas no navio Leopoldo Peres, que descia o rio Amazonas de Manaus a Belém. Retornávamos a Recife, depois de um período de dois anos em que nossa família morou na capital amazonense. Um tempo intenso que nós, na inocência de seis e quatro anos, não conseguimos captar na totalidade (e quem consegue?). Mas intuímos nos fragmentos de conversas dos adultos, passeios de barco, cheiros de chuva, mato e frutas estranhas, reflexos de luz naquele mundo de mistérios, naufrágios e águas grandes. Arrisco dizer que muito do que sou hoje se deve às experiências vividas na infância amazônica. Manaus, na época, tinha em torno de cem mil almas – uma provinciazinha em comparação com a atual metrópole inchada de 1,7 milhão de habitantes. Os “banhos” – passeios a igarapés que nos encantavam nos fins de semana – foram engolidos pela onda urbana e estão cada vez mais distantes. Mas, na essência, a cidade continua uma ilha humana rodeada de floresta úmida e água por todos os lados. A sensação de pequenez diante do universo, de deslumbre com a enormidade da natureza, foi tão marcante que me acompanha sempre.
Uma cena que se repetiu algumas vezes na viagem me impressionava. Quando ancorávamos em algum porto, caboclinhos com a minha idade ou menos remavam em canoas até o casco do navio e pediam coisas. Os passageiros amarravam roupas, comida e dinheiro em sacos plásticos e os jogavam na água. Os meninos iam nadando como peixes e recolhiam as doações. Outra lembrança: em cima desse bote salva-vidas, ou de outro parecido, esqueci um cavalinho de borracha natural que havíamos comprado no porto de Santarém. Quando dei por mim, o bicho tinha derretido no sol forte e se transformado no que hoje me pareceria uma obra de arte conceitual. Enquanto eu enxugava as lágrimas, o navio descia a correnteza em direção ao mar, me dando as primeiras lições de transformação e impermanência. Desde então, só retornei ao Amazonas uma vez, em 1990, por alguns meses. Já tá quase na hora de ir de novo.
p.s.: Foto de Sara Veras, minha mãe, digitalizada pelo amigo Michel. O slide tinha perdido as cores originais e estava arranhado, então dei uma fotoxopada restauradora e converti pra preto e branco.
p.s.2: O navio Leopoldo Peres naufragou na década de 80, depois de uma colisão com uma fragata da Marinha.
p.s.3: Já leu Milton Hatoum? Recomendo. Literatura amazônica e universal.
p.s.4: Já contei essa história do cavalinho aqui antes, mas só por alto, sem foto. E se tem uma coisa com que não me preocupo é me repetir.
16
Oct09
O porco por Flávio José Cardozo
Estávamos na fase de conclusão do doc quando recebi um simpático e-mail de mestre Flávio José Cardozo, que honra as letras de Santa Catarina e do Brasil com seus contos, romances e crônicas. Ele disse estar curioso para ver o filme e enviou uma crônica publicada em setembro de 1991 no Diário Catarinense, reverenciando o porco. Aguardamos você lá, Flávio! Uma das cenas tem muito a ver com o seu texto.
O porco
Flávio José CardozoAlcebíades Santos, repórter de jornal, manda de Chapecó competente matéria sobre as não sei quantas utilidades que tem o porco. Relata dele tanta serventia que o leitor ponderado se constrange de já ter olhado o porco sem respeito e, pior, ter usado seu bom nome para definir um ou outro mau sujeito. Até um pensamento triste e torto cheguei a ter, confesso humildemente: da ponta do rabinho à pontinha da orelha, tintim por tintim desse vivente é 100% aproveitado – de mim que percentagem se aproveita, vivo ou morto?
Alcebíades Santos, com senso didático, retalha para nós um porco bem no ponto e faz este balanço matemático: itens industrializados são cerca de oitenta, do tipo mortadelas e salsichas; produtos congelados são uns quinze, como pernil, lombo e filé, e uns dez produtos salgados como pés, orelhas, rabo, que fazem da feijoada o encanto que ela é. E como se isso tudo não fosse já legal extraem-se ainda do dadivoso porco bondades com os quais nunca sonhou nossa vã porcologia.
Dos miolos e do reto, vejam só que chique, resultam uns peregrinos manjares que, atravessando a barreira dos mares, vão deliciar Hong-Kong. Quanto ao útero da porca, eis o seguinte: não dá só porquinhos, dá também um prato de oriental requinte. E o tesouro científico que é o porco?De seu pâncreas tiram a insulina; da mucosa intestinal, a heparina; do duodeno não ficou dito que remédio mas dele sai remédio. E nas válvulas cardíacas, ó que porco cordial! Elas dão certinho no coração humano, não há nada que melhor e por mais tempo funcione que as válvulas cardíacas do porco. Que tal, bípede mofino, saber o coração batendo aí no peito com um tique-taque suíno?
Do couro sem luxo de quem rolou na lama saem sapatos e roupas que dão gosto, e do pêlo sai pincel para ensaboar o rosto, e do casco sai cola, e dos ossos, fígado e pulmões saem rações que perpetuam o porco irmão no corpo de outros bichos.
Soubesse eu fazer orações boas, de contrição uma faria: perdão, porco, se usei mal o teu nome, perdoas?
(Diário Catarinense – 11.09.1991)
~
Acompanhe o blog de lançamento do filme.
15
Oct09
Histórias do Brasil Caipira
Em homenagem ao amigo Marques Casara, aniversariante do Dia da Criança, aí vai uma crônica dele de 2000. É o piloto de uma série que se chamaria Histórias do Brasil Caipira, a ser publicada na revista digital Guru de Viagem – projeto que terminou não saindo da prancheta, por conta do estouro da bolha da internet. Fica a esperança de que essas histórias ressurjam num blog do Casara ou em outro lugar qualquer. Com certeza ele tem muito o que contar.
p.s.: Esta crônica sai do fundo do baú pelas mãos do Rogério Mosimann, pai da ideia do Guru de Viagem e de outras tantas, meu companheiro de aventuras digitais e etílicas no Rio, no Chile e em Floripa.
Viagem sem fim
Coloquei na mochila duas calças, uns três shorts, camisas, um pacote de maços de cigarro, um canivete e fui pra rodoviária começar a viagem mais longa da minha vida. A idéia era sair de Chapecó, interior de Santa Catarina, passar por São Paulo, Mato Grosso, Rondônia, conhecer a Amazônia, ver o encontro das águas no Rio Negro, visitar Belém, tomar umas cervejas em Goiás e estar de volta em 30 dias. Contornar o Brasil, encontrar pessoas, pegar muita carona e gastar o mínimo possível. Nunca mais parei de viajar desde então, 13 anos atrás. Conheci tanta gente que as agendas se perderam pelo caminho. Sobraram recordações, amores, medos e algumas alegrias.
Viajar é percorrer a estrada da vida que risca o horizonte das incertezas. Pra onde vou? Sei lá… Outro dia eu estava sentado na beira de um rio no Vale do Curuçá, interiorzão da Amazônia. O barco que nos levava jazia emborcado no leito lamacento, abatido por um tronco que chegou sem anunciar-se. Eu esperava o resgate, carona que me levasse de volta pra casa. Pensava, olhando as lontras que reclamavam aos gritos da minha presença em seu mundo, que aquela viagem, iniciada há 13 anos, ainda não chegara ao fim. Nunca mais fui o mesmo depois que ajustei as cordas da mochila e dei adeus à namorada, que ficou com o coração na mão e a certeza de que eu nunca voltaria.
As estrelas de leite que iluminam a noite da floresta me tornaram contemplativo e questionador. Quando essas árvores forem devoradas pelos monstros de lata, derem lugar aos arranha-céus do apocalipse, o mundo vai virar de ponta cabeça e a dor do índio será soterrada pelo entulho concreto dos edifícios de areia. Triste sina de nosso povo, que cresceu em tecnologia mas não aprende a respeitar diferenças étnicas e culturais.
O dia clareava sobre a rodoviária quando embarcamos, eu e meu amigo, para essa viagem de um mês que ainda não acabou. O ronco do Scânia de 38 lugares ainda ressoa em algum ponto perdido da memória. Fica mais forte na medida em que puxo pela recordação, recomeço essa viagem pelo Brasil.Se quiser, venha comigo nessa boléia. Troque idéias sobre os temas que vamos encontrar pelo caminho. Uma viagem sem cinto de segurança, repleta de muita aventura e histórias curiosas. Vamos nessa! (05.12.2000)Marques Casara é jornalista e diretor de documentários. Acha que o Brasil é bem maior do que a gente pensa e por isso, sempre que pode, sai em busca de boas histórias para compartilhar com seus conterrâneos. Trabalhou para grandes revistas e emissoras de televisão. Atualmente, atua na área de projetos da Editora Abril.