03
Jan25
DVeras Awards de Literatura 2023/2024
Depois de um interlúdio, o DVeras Awards de Literatura está de volta, agora em calendário bienal. A edição 2023/2024 marca uma década desta celebração hedonista e não utilitária da leitura, promovida pelo blog DVeras em Rede.
O certame se inspira na lista dos dez direitos inalienáveis do leitor, de Daniel Pennac (Comme un Roman, 1992). Dois deles, em especial, justificam a pausa na premiação em 2023: o direito de não ler e o direito de calar-se. Exerci ambos sem culpa e agora volto a compartilhar minhas garimpagens.
As histórias deste ciclo vão de saga familiar a crime antigo, de amor bandido a busca existencial, de realismo mágico a poesia em prosa. Elas têm sangue, sexo, sonhos. Têm gato sumido, banho de sol com vizinha, pileque de vinho. Espionagem, equívocos, saudades.
Personagens inquietas nos conduzem pelas ruas de Tóquio, Roma e Cidade do México, por subúrbios barra-pesada de Brisbane, pampas gaúchos, estepes chinesas, apartamentos paulistanos… Histórias muito diversas, mas com uma coisa em comum: passam longe do tédio.
As regras
A coisa funciona mais ou menos assim: estão excluídas as leituras incompletas até 31 de dezembro, assim como as obras técnicas, de referência e lidas por motivos profissionais, exceto quando o prazer superar a utilidade. Controvérsias e casos omissos são decididos de forma irrecorrível pela comissão julgadora – eu mesmo -, que assume os riscos das eventuais tolices e imprecisões.
Os números
Em 2023 e 2024, li por prazer 20 livros de 17 autores de 7 países: Brasil, Austrália, Cuba, Estados Unidos, Japão, México e Reino Unido (a trilogia de Verissimo é contabilizada como um único livro). Só 4 foram escritos por mulheres (é pouco). Há 15 autores vivos, que eu saiba, e conheço 4 pessoalmente. Por gênero, são 13 romances, 5 coletâneas de contos e uma de crônicas. Por idioma, são 15 obras em português – traduções inclusas -, 3 em espanhol e uma em inglês.
A lista
Li duas coletâneas de contos de Lucia Berlin, ganhadora do DVeras Awards de 2019 com o Manual da Faxineira: Noite no paraíso e Bienvenida a casa, ambos de fundo autobiográfico. No segundo livro, ela recorda a vida a partir das casas em que morou. Ficou inacabado com a morte da autora e inclui várias cartas. Sou fã da escrita de Lucia, que transforma o leitor em amigo íntimo com graça e leveza.
Um garimpeiro, um padre, um médium, um detonador, um guia turístico e eu, de Paula Gomes, me fisgou pelo título (meu pai aprovaria; sempre que alguém começava uma enumeração de pessoas com “eu”, ele citava o ditado espanhol: “Y el burrito adelante”). Sua narrativa é inventiva e bem-humorada, cheia de personagens excêntricos e com pinceladas de absurdo. E por falar em absurdo…
A hora dos ruminantes, José J. Veiga, foi uma bela descoberta. Esse romance alegórico publicado em 1966 conta sobre a chegada de forças misteriosas na pacata vila de Manarairema. As presenças perturbadoras incluem homens mudos e autoritários, um exército de cães e uma invasão de bois.
Adiós, Hemingway é um romance policial ambientado em Cuba, que coloca no centro da história o escritor americano em uma trama de assassinato investigada anos depois, quando o ex-detetive Mário Conde é encarregado de descobrir a identidade de um esqueleto encontrado na propriedade de Hemingway. O autor, Leonardo Padura (O homem que amava os cachorros), é dos bons.
Quatro mulheres, de Ricardo Medeiros, é uma reportagem romanceada sobre quatro mulheres que cruzaram a vida do meu amigo jornalista e escritor catarinense. Dare, aeromoça que viajou o mundo pela Varig; Paula, que trabalha cuidando de corpos após a morte; Biba, trabalhadora de serviços gerais, e sua mãe Margaridinha, dona de casa. Bem bom.
O tempo e o vento, de Erico Verissimo, narra a formação do Rio Grande do Sul por meio de gerações das famílias Terra e Cambará. Amor, poder, guerra e identidade se entrelaçam numa saga que atravessa séculos. A obra está dividida em três livros: O Continente, O Retrato e O Arquipélago. Amei. Não vi a série da Globo, mas imaginei o Capitão Rodrigo com a cara do Tarcísio Meira.
Asfalto selvagem: Engraçadinha, seus amores e seus pecados, clássico de Nelson Rodrigues, aborda os dilemas morais e passionais de uma mulher que vive no subúrbio do Rio de Janeiro. É uma crônica de costumes muito bem contada. Também não vi a série da Globo, mas visualizei a protagonista encorpada em Alessandra Negrini e Cláudia Raia.
Softwares livres para jornalistas e profissionais de comunicação, do amigo Gastão Cassel. Li motivado pelo prazer de encontrar um texto de qualidade rara em obras de referência. Traz ótimas dicas de recursos gratuitos para quem deseja evitar as assinaturas de programas de computador. Acho que vai precisar de uma versão atualizada em breve, pois o cenário muda rápido.
Crônica do pássaro de corda, Haruki Murakami. Toru Okada é um homem comum que busca respostas para o desaparecimento da esposa e do gato. Nessa jornada, ele é levado a um mundo fantástico que combina memórias dele e de outros personagens incríveis, sonhos e eventos estranhos. Tem uma subtrama sobre a presença de tropas japonesas na China durante a 2a. Guerra.
O incolor Tsukuru Tazaki e seus anos de peregrinação, do mesmo autor, traz outra busca existencial. Tsukuru Tazaki se considera um homem sem graça, depois de ter sido excluído do convívio com seus melhores amigos de juventude, por motivo que desconhece. Um dia ele resolve enfrentar essa dúvida e parte em busca de explicações, que incluem até mesmo uma viagem à Finlândia. Bonito.
Abandonar um gato, também de Murakami, é um ensaio autobiográfico sobre a relação complicada dele com o pai, em tom honesto e intimista. O autor aborda o impacto da 2a. Guerra sobre a juventude do pai, a partir de uma pesquisa detalhada de alguns eventos marcantes.
The Things They Carried, Tim O’Brien, é uma coleção de contos interligados que aborda as experiências de um grupo de soldados americanos na guerra do Vietnã. O título se refere aos objetos que os personagens carregavam. Muito bem escrito. Tem uma pegada parecida com aquele filme reflexivo sobre a batalha da Guadalcanal (WW2), Além da linha vermelha, de Terrence Malick.
Bambino a Roma, lançado em julho de 2024, é o romance mais recente de Chico Buarque. Traz memórias romanceadas da sua infância em Roma, onde morou entre 1953 e 1954. Interações com a família, colegas de escola e amigos do bairro, passeios de bicicleta, paixões platônicas, tudo contado com a maestria de quem tem domínio perfeito do idioma e da arte de contar histórias.
Contos escolhidos reúne histórias curtas de Aldous Huxley, abordando a condição humana, impactos da modernidade e dilemas morais. Gostei muito de O pequeno Arquimedes, sobre um menino italiano que se revela um gênio da música. Outra ótima é sobre uma mulher inglesa em sua villa italiana, entediada com a monotonia do casamento, que vive um romance extraconjugal. Ótimo “plot twist”.
Famílias terrivelmente felizes, de Marçal Aquino, traz 13 contos com personagens que enfrentam situações-limite do cotidiano, como traições, violências e desejos reprimidos. Com estilo afiado e econômico, Aquino é mestre na narrativa curta. Gostei, mas achei meio desigual. Há contos excelentes e outros nem tanto, mas vale a leitura.
Garoto devora universo, do jornalista australiano Dalton Trent, foi outra boa descoberta. A história se passa no subúrbio de Brisbane e é contada por um garoto de 12 anos que vive situações complicadas com leveza e humor: mãe dependente de heroína, padrasto traficante, irmão mais velho que não fala e é clarividente, pai omisso, babá ex-presidiário. Virou série na Netflix, bem adaptada.
O verão sem homens, de Siri Rustvedt, conta sobre Mia Fredrickson, poeta de 55 anos que sofre um colapso nervoso depois da separação. Para se recuperar, ela se refugia na cidade natal em Minnesota, onde convive com a mãe e um grupo de amigas idosas, além de algumas adolescentes a quem dá aulas de poesia. Bonito. Siri é viúva do escritor Paul Auster, que morreu em 2024.
Salvar el fuego, de Guillermo Arriaga, ganhou o Prêmio Alfaguara de romance em 2020. Aborda um amor intenso e proibido entre uma mulher casada de classe alta, coreógrafa que vive na Cidade do México, e um presidiário condenado à prisão perpétua por assassinatos. Forte e tensa alegoria das contradições da sociedade mexicana. Em 2012, fiz um curso de roteiro com o autor em Curitiba.
Chá de Bolda, de Valério Bolda. Tive a honra de participar desse projeto como revisor e palpiteiro. O autor é um autêntico manezinho de Floripa que, por insistência dos amigos, transformou em livro as crônicas hilárias que publicava no Facebook. A obra seria ilustrada pelo querido Frank Maia, que nos apresentou, mas morreu cedo, então as ilustrações foram feitas pelo competente Galvão Bertazzi.
O resultado
Apontar o melhor livro lido no biênio foi tarefa dificílima, pois tem muita coisa excelente. Para reduzir o volume de impropérios contra sua escolha, a comissão julgadora concedeu algumas menções especiais e lembra a todos de que, no fim das contas, esta é só mais uma lista.
Hors concours: O tempo e o vento. Esse monumento em prosa não deixa nada a dever aos maiores cânones literários. Seria covardia deixá-lo competir.
Melhor romance de estreia: Garoto devora universo. Dalton Trent mandou bem nessa história autobiográfica. Os personagens são adoráveis, embora algumas situações, não muiro verossímeis.
Melhor livro de crônicas: Chá de Bolda. Valério tem habilidade inata pra captar o absurdo e a graça das situações do cotidiano. Torço pra que continue escrevendo.
Melhor livro de contos: Noite no paraíso. Lucia dominava o ofício e sabia se colocar inteira no que escrevia. Viveu com intensidade e compartilhou isso com os leitores.
Medalha de bronze: Crônica do pássaro de corda. Quem acompanha o DVeras Awards sabe da minha admiração por Murakami. Este não é o meu favorito dele (acho que é Norwegian Wood), mas é uma amostra incontestável do talento para construir mundos imaginários que bordejam o real. Confesso que tenho dificuldade de comentar e “rotular” a obra de Murakami, às vezes descrita de forma imperfeita como “realismo mágico japonês”. Ela me afeta além da palavras.
Medalha de prata – Bambino a Roma. “Chega a ser irritante a capacidade que Chico tem de fazer coisas boas”, disse Cadão Volpato em sua resenha dos melhores livros do ano para o Valor Econômico. Bambino a Roma é um delicioso retorno a um período da infância de nosso muso da MPB, quando ele ainda usava calças curtas e passou uma temporada na Itália. Chico combina suas lembranças com recursos ficcionais e assume isso pro leitor. Adorei. Se ele fosse americano, já teria ganhado o Nobel de Literatura pelo conjunto da obra.
E a medalha de ouro do DVeras Awards vai para…
Salvar el fuego. Sabe aquele tipo de livro que você não consegue largar até chegar no fim? Guillermo Arriaga nos faz mergulhar com a cabeça, o coração e as tripas na história de amor entre a coreógrafa Marina e o presidiário José Cuauhtémoc, uma avalanche que não pode ser detida. O romance bebe da experiência dele como roteirista (Amores Brutos, 21 Gramas, Babel) e diretor de cinema (The Burning Plain), mais vai além: é muito bem escrito. Três personagens se alternam na narrativa, que soa autêntica e vigorosa. O resultado é um romance forte, passional, que vai ganhando força à medida que avançamos na leitura. Tem tudo pra virar um belo filme.
24
Sep24
Chá de Bolda
Um lançamento muito especial: “Chá de Bolda”, com crônicas hilárias do amigo Valério Bolda. Cometi a revisão. O livro seria ilustrado pelo saudoso Frank Maia, que me apresentou o autor, mas não deu tempo. Ilustrações de Galvão Bertazzi. Dia 11/10 às 18h no Boteco Zé Mané, em Coqueiros, Floripa.
Nas crônicas, que ajudei a selecionar entre seus escritos no Facebook, Bolda navega com elegância e humor natos entre temas cotidianos, passando por histórias de seus pais a causos da adolescência no Estreito, comentários políticos e viagens pelo Cone Sul com a companheira. Ouro puro.
Amigas e amigos do Frank Maia, não deixem de comprar. O livro só saiu por causa da insistência dele com o Bolda, que em sua imensa modéstia, achava as crônicas um monte de bobagens. No último texto, que me fez chorar, ele conta sobre o único encontro que tiveram, num bar em Santo Antônio de Lisboa.
19
Sep24
Pour un féminisme décentré
Acaba de chegar a edição quentinha de “Pour um féminisme décentré: recadrer, resistir” (Por um feminismo descentrado: recontextualizar, resistir), da filósofa tunisiana Soumaya Mestiri. A capa é uma foto minha do mural Pacha Mama, em Bariloche, que também tá aqui no meu perfil.
Da contracapa:
Soumaya Mestiri é professora de filosofia política e social na Universidade de Túnis. Seus trabalhos abordam o liberalismo e as teorias da justiça, assim como as questões de gênero aplicadas ao prisma pós-colonial e decolonial.
Encontrei uma palestra dela no youtube, no canal da Fundação Rosa Luxemburgo de Cooperação Acadêmica.
Mais sobre ela na Wikipedia: Soumaya Mestiri (1976) explora temas relacionados ao feminismo e à relação entre sociedades ocidentais e islâmicas. Seu trabalho recente examina questões sobre democracia no mundo árabe e debates como o uso de burkínis na França.
Fotografei o mural Pacha Mama em 2011, em Bariloche. E até há pouco, não sabia os nomes dos artistas: Horacio Ferrari, Andreina Poli, Agustin Giovaninni e Lau Nitzsche. Todos autorizaram a publicação. O livro saiu por Le Cavalier Bleu, editora feminista de Paris.
Cedi a foto sem custos, com licença Creative Commons. E a editora Anne-Laure Marsaleix gentilmente me enviou três exemplares. Um deles vai me ajudar a desenferrujar o francês. Os outros dois vão pra Biblioteca Universitária e pro Instituto de Estudos de Gênero da UFSC.
31
Dec21
DVeras Awards de Literatura 2021
Chegou a hora de anunciar os resultados da 15a. edição do DVeras Awards de Literatura, celebração anual da leitura por prazer, promovida pelo blog DVeras em Rede. Nosso patrono (ele ainda não sabe) é Daniel Pennac, autor da lista com os dez direitos inalienáveis do leitor. Em 2021 eu exerci quatro deles de forma continuada e sem culpa: o direito de não terminar um livro; o de reler; o de ler qualquer coisa, e o de ler uma frase aqui e outra ali. Portanto, não espere uma lista muito extensa.
No segundo ano da praga viral e terceiro da peste familiciana, concluí 18 livros, igualando a marca de 2020 e a média de um livro a cada três semanas. Os temas foram da ficção científica ao crime, passando por política e amor, música e História, filosofia e ciência, humor e autoconhecimento. Por gênero, foram nove romances, duas grandes reportagens, duas coletâneas de contos, duas de ensaios e uma de crônicas, além de um livro de poemas e uma biografia. Os países de origem dos 15 autores homens e quatro mulheres são Austrália, Argentina, Brasil, Estados Unidos, Japão, Peru, Rússia e Suécia. Algumas menções honrosas por categoria:
- De pirar o cabeção: Quarantine, sci-fi de Greg Egan
- Caliente: hai quases, poemas de Lilian Schmeil
- Melhor leitura de banheiro: Vai dar merda, crônicas de Cláudio Schuster
- Releitura: A invenção de Morel, sci-fi de Bioy Casares
- Pra ler ouvindo música: Can’t Buy Me Love, biografia dos Beatles por Jonathan Gould
- Necessário: A república das milícias: dos esquadrões da morte à era Bolsonaro, reportagem de Bruno Paes Manso
-
Dava um filme: Baixo esplendor, romance de Marçal Aquino, empatado com Nove histórias errantes, contos de Márcia Feijó
A lista de concorrentes, pela ordem cronológica em que foram concluídos:
- A invenção de Morel, Adolfo Bioy Casares
- A república das milícias: dos esquadrões da morte à era Bolsonaro, Bruno Paes Manso
- Quarantine, Greg Egan
- Mossad: os carrascos do kidon, Eric Frattini
- Crime e castigo, Fiódor Dostoiévski
- Homens sem mulheres, Haruki Murakami
- South of the Border, West of the Sun, Haruki Murakami
- After Dark, Haruki Murakami
- Pontos de fuga: o lugar mais sombrio, Milton Hatoum
- O homem que sorria, Henning Mankell
- Can’t Buy Me Love, Jonathan Gould
- Um casamento americano, Tayari Jones
- Baixo esplendor, Marçal Aquino
- A Field Guide to Getting Lost, Rebecca Solnit
- Algoritmos para viver: a ciência exata das decisões humanas, Brian Christian e Tom Griffths
- Nove histórias errantes, Márcia Feijó
- hai quases, Lilian Schmeil
- Vai dar merda, Cláudio Schuster
E os três premiados são…
15
Mar21
Focinho de bezerro
24
Feb21
Lendo: Up In The Old Hotel
Up In The Old Hotel. Coletânea de perfis escritos por Joseph Mitchell para a New Yorker entre o fim da década de 1930 e 1964. Uma aula de jornalismo. Dica do Yan Boechat.
07
Jan21
Leituras de 2021: A invenção de Morel
No Dia Nacional do Leitor, mais um registro de leitura finalizada.
3) A invenção de Morel. Este romance do argentino Adolfo Bioy Casares (1914-1999), publicado em 1940, combina realismo fantástico com ficção científica numa história que nos faz mergulhar, junto com o narrador, numa lógica alucinada. Ele é um homem condenado à prisão perpétua que foge para uma ilha deserta, famosa por conter uma praga que mata os visitantes em poucos dias. Lá, começa a encontrar várias pessoas perambulando – por uma igreja, um museu e outros espaços -, mas não consegue fazer contato. Apaixona-se por uma das aparições, Faustine, linda mulher que vai todos os dias contemplar o mar, mas também é ignorado por ela. Esse mundo estranho tem duas luas (assim como universo paralelo da trilogia 1Q84, de Haruki Murakami), dois sóis e marés descontroladas. O homem começa a refletir sobre a sua solidão, a finitude da vida, a realidade e os simulacros. Sua busca para a explicação do que acontece é explicada pelo título. A invenção de Morel foi descrita por Jorge Luis Borges, o mestre dos labirintos metafísicos, como “perfeita”.
05
Jan21
Leituras de 2021: Um casamento americano e Paraízo-Paraguay
Comecei o ano com dois romances brilhantes, ambos relacionados a racismo em contextos bem diferentes. O primeiro, de uma autora americana negra, tem um triângulo amoroso como pano de fundo. O segundo, de um romancista estreante de Blumenau, detona a idealização do passado glorioso dos imigrantes alemães.
1) Um casamento americano (Arqueiro, 2019), de Tayari Jones, conta a história de Celestial e Roy, casal afroamericano de classe média que tem a vida virada do avesso quando ele é condenado a 12 anos de prisão por um crime que não cometeu. A outra ponta do triângulo é André, também negro, amigo de infância de Celestial, que a apresentou a Roy e conforta a amiga durante os anos de encarceramento do marido. A narrativa em primeira pessoa alterna as vozes das três personagens, acompanhando a tempestade emocional que desaba na vida delas e as escolhas difíceis que precisam tomar. Publicado em 2018, este é o quarto romance de Tayari Jones, professora universitária de Atlanta. No ano seguinte, ganhou o Women’s Prize for Fiction, um dos prêmios literários mais prestigiados do Reino Unido. A obra foi incluída no clube do livro de Oprah Winfrey e elogiada pelo ex-presidente Barack Obama.
2) Em seguida li Paraízo-Paraguay (Caiaponte, 2019), primeiro livro de prosa do blumenauense Marcelo Labes. Seu romance histórico é um mergulho incômodo na memória da imigração alemã em Santa Catarina. Acompanhamos a trajetória de Wilhelm, trambiqueiro que desembarca no Brasil em busca da fortuna e se vê obrigado a ir à Guerra do Paraguai como “voluntário da pátria”. A história é recordada por Olga, uma velha que revisita o passado enquanto agoniza, para constrangimento do filho Hans e da nora Anna. As vilanias de Wilhelm/Guilherme e seus descendentes ajudam a desmontar a idealização do passado grandioso dos colonizadores. Escravidão, massacres de indígenas, apoio ao nazismo apagado da história oficial, isolamento e flerte com a loucura, todos esses ingredientes fazem do romance de Labes uma viagem vertiginosa e necessária. Paraízo-Paraguay ganhou o Prêmio São Paulo de Literatura em 2020 e o segundo lugar no Prêmio Literário da Biblioteca Nacional em 2019.
29
Dec20
DVeras Awards de Literatura 2020
Eis uma nova edição do DVeras Awards de Literatura, há 14 anos celebrando o direito humano universal ao prazer da leitura ociosa. Li pouco neste Ano das Pestes de 2020. Acompanhar os capítulos da novela grotesca chamada Brasil me provocou certa dificuldade de concentração. Mas até mesmo num ano de merda, houve espaço pra descobertas alentadoras. Livros são grandes companheiros na tormenta, portais no espaço-tempo e vacinas antiestupidez com alta eficácia. Pelo menos, não conheço nenhum leitor voraz que seja terraplanista e faça ozonioterapia retal.
Repasso as regras deste concurso hedonista. O DVeras Awards de Literatura, promovido pelo blog DVeras em Rede (que em julho completou 20 anos), elege anualmente os melhores livros que li por prazer. Ficam excluídas as obras de propósito utilitário, as inacabadas até 31 de dezembro e as hors concours. Amigas e amigos leitores são incentivados a também compartilharem suas listas. Este ano o prêmio tem duas categorias: “ficção” e “não-ficção”, com aspas, cada uma com três nominados e um vencedor. O melhor de todos ganha o Grand Prix DVeras.
Em 2020, li 18 obras que atenderam os critérios do certame – um livro a cada três semanas, bem aquém da média usual. Os temas variaram da guerra à antropologia, da psicologia à criminalidade, da filosofia à sátira da autoajuda, da imigração à violência digital, em gêneros como realismo fantástico, jornalismo literário e divulgação científica. Os autores são de dez países: Alemanha, Angola, Argentina, Brasil, Estados Unidos, Inglaterra, Islândia, Israel, Japão e Líbano. Há somente seis mulheres na lista. Esta retrospectiva me ajuda a definir alguns desafios factíveis para 2021:
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ler um livro por semana
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ler mais mulheres
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ler mais autores da América Latina e África
-
ler mais em espanhol e inglês
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explorar mais temas e formatos
Vamos ao que interessa:
Hors concours
Siddartha, publicado em 1922 por Herman Hesse, que ganhou o Nobel de literatura em 1946. Obra bela e poética sobre a busca de autoconhecimento de um indiano contemporâneo de Buda. Demorei anos pra encarar a leitura, o que foi bom, pois o tempo me deixou mais receptivo. Recomendo. Lido em inglês.
“Não-ficção”
-
The Last Battle. Cornelius Ryan, 1966. Relato sobre o avanço das tropas aliadas sobre a Alemanha nos últimos dias da 2a.Guerra Mundial, baseado em documentos históricos. Ajuda a entender como se deu a repartição do país entre americanos e soviéticos, que definiu a geopolítica europeia pós-guerra. Lido em inglês.
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Rápido e devagar: duas formas de pensar, Daniel Kahneman. O psicólogo israelense, ganhador do Nobel de Economia em 2002 por suas teorias sobre economia comportamental, questiona de maneira bem fundamentada a ideia de que a nossa tomada de decisões é exclusivamente racional. Lido em inglês.
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Você não merece ser feliz: como conseguir mesmo assim, Craque Daniel. Os humoristas Daniel Furlan e Pedro Leite, do Falha de Cobertura, criaram uma paródia de manual de autoajuda que ironiza a mania das pessoas de perseguir a felicidade. “Se você quiser, se você se esforçar, se você treinar, se você entrar de cabeça, se você se concentrar, nada garante que você vai conseguir”, resumem. Ri muito.
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A guerra: a ascensão do PCC e o mundo do crime, Bruno Paes Manso e Camila Caldeira Nunes Dias. Livro-reportagem sobre os bastidores do Primeiro Comando da Capital, suas disputas com outras facções criminosas, a expansão pra outros países e a falência da segurança pública no Brasil. Bem apurado, mas às vezes repetitivo.
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Uma história da guerra, John Keegan. O historiador britânico dá uma aula sobre a natureza humana ao examinar as origens dos conflitos bélicos, suas motivações, rituais e evoluções tecnológicas, dos guerreiros de Átila aos ianomâmi, dos bôeres na África do Sul aos soldados das guerras globais do século 20.
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Diário de Berlim Ocupada: 1945-1948, Ruth Andreas-Friedrich. Relato em primeira pessoa sobre a barbárie do pós-guerra por uma jornalista alemã. Ela se vê sitiada em situação precária num apartamento com amigos, passando fome e frio enquanto tropas russas e aliadas ocupam a cidade e a guerra fria começa a se instalar.
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A lógica do cisne negro, Nassim Nicholas Taleb. Publicado em 2007 pelo matemático e consultor financeiro de origem libanesa, o livro mostra como estamos constantemente à mercê de acontecimentos imprevisíveis que são a base de quase tudo o que acontece no mundo. Muito atual.
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A máquina do ódio: notas de uma repórter sobre fake news e violência digital, Patrícia Campos Mello. A jornalista conta como as redes sociais são manipuladas por líderes populistas, afetando processos eleitorais e minando a democracia. A obra é uma ampliação de reportagens publicadas na Folha de S. Paulo. Leia.
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O mundo até ontem: o que podemos aprender com as sociedades tradicionais?, Jared Diamond. O biólogo evolucionário, fisiologista e biogeógrafo nos conduz ao cotidiano de sociedades tradicionais – povos das ilhas do Pacífico e do deserto Kalahari, inuítes, índios da Amazônia, entre outros, mostrando que temos muito a aprender com eles, sem idealizar seu estilo de vida.
“Ficção”
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Manual prático de levitação, José Eduardo Agualusa. O volume reúne 20 contos organizados em três partes: Angola, Brasil e Outros lugares de errância. Gostei demais. Tenho especial predileção pelo gênero e, neste meu primeiro contato com o autor angolano, percebi grande talento e domínio técnico. Quero mais.
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Murilo Rubião, obra completa. Coleção dos 33 contos do brilhante autor mineiro que antecipou o gênero literário do realismo fantástico, popularizado depois por García Márquez e Julio Cortázar. Rubião passou anos reescrevendo sua obra.
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Killing Commendatore (O assassinato do comendador, em português), Haruki Murakami. Pintor recém-separado sai numa road-trip pelo norte do Japão e depois vai morar numa casa na montanha. Lá encontra um quadro misterioso no sótão e conhece um vizinho rico solitário que guarda um segredo. Lido em inglês.
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O álibi perfeito e outras histórias, Patricia Highsmith. Contos de uma das autoras mais reconhecidas do gênero crime e mistério. Não estão à altura dos excelentes O talentoso Ripley e O amigo americano, matérias-primas de duas boas adaptações no cinema.
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Love, Stephen King. A viúva de um escritor famoso começa a receber ameaças de um maluco, fã do autor e obcecado pelo acervo inédito supostamente guardado por ela. King nos conduz ao passado do casal e a um segredo terrível da infância do escritor, que abre o portal para uma realidade fantástica.
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O segredo do lago, Arnaldur Indridason. O esqueleto de um homem é encontrado no fundo de um lago islandês que começou a perder água por causa de uma fissura geológica. Junto dele está um equipamento de rádio de origem soviética. A narrativa acompanha a investigação policial do caso, que desvenda memórias da guerra fria.
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Plata quemada, Ricardo Piglia. Ficção entre grandes aspas. O autor baseia a narrativa numa história verídica sobre assaltantes argentinos que, depois de um sangrento roubo a banco em 1965, escapam para Montevidéu. Lá são cercados em um apartamento pela polícia uruguaia e decidem resistir a bala. Lido em espanhol.
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Intérprete de males, Jhumpa Lahiri. A autora inglesa naturalizada americana ganhou o Pulitzer de literatura em 2000 com este volume de contos, seu primeiro livro. São histórias de indianos ou descendentes tentando se adaptar à vida nos Estados Unidos ou em seu cotidiano na Índia. Bem bom.
Resultados
Na categoria “não-ficção”, foram nominados Rápido e devagar, A máquina do ódio e O mundo até ontem. O livro de Patrícia Campos Mello é fundamental pra entender o momento político que vivemos hoje no Brasil e o contexto em que isso ocorre. O de Jared Diamond é uma rica oportunidade para os interessados em antropologia conhecerem as pesquisas do autor com sociedades caçadoras-coletoras e refletir sobre o estilo de vida urbano ocidental.
E o escolhido é…
Rápido e devagar: duas formas de pensar. O psicólogo comportamental Daniel Kahneman apresenta as pesquisas sobre o funcionamento da mente que o fizeram virar referência em economia. A partir de diversos experimentos, ele mostra como tendemos a nos comportar em temas como aversão à perda, excesso de confiança em escolhas estratégicas, dificuldade de prever o que vai nos fazer felizes no futuro e identificação de riscos. Aula magna sobre a natureza humana, serve também de alerta para não apostarmos demais na intuição. Sim, a intuição falha, e mais vezes do que gostaríamos de crer. Livraço.
Na categoria “ficção”, os nominados são Murilo Rubião: obra completa, Killing Commendatore e Plata quemada. O volume de histórias fantásticas de Rubião ganhou menção honrosa, mas poderia estar tranquilamente ao lado de Siddharta como hors-concours. Dos contos, destaco o belo Bárbara, sobre a mulher que pedia coisas extravagantes ao marido, e Teleco, o coelhinho, sobre um coelho falante que muda de forma. O romance de Piglia representa a literatura argentina com louvor, bebendo do jornalismo para trazer ao leitor uma narrativa ágil e de grande interesse humano.
E o escolhido é…
Killing Commendatore, de Haruki Murakami, que também leva o Grand Prix DVeras de melhor livro lido em 2020. O autor de Kafka à beira-mar e da trilogia 1Q84 nos presenteia com sua concepção peculiar de realismo fantástico, desta vez mergulhando na pintura como forma de expressão. O assassinato do comendador se aproxima da obra de Murilo Rubião quanto à falta de espanto das personagens diante de situações extraordinárias. Seu protagonista, um pintor de retratos com 36 anos, vive uma experiência invulgar na casa isolada que alugou numa montanha: em certas madrugadas, escuta o som de um pequeno sino vindo da floresta próxima. A maneira como ele lida com esse mistério, ajudado por um vizinho milionário e solitário (ecos de O Grande Gatsby, de Fitzgerald) e por uma adolescente, conduz a história a uma fascinante investigação da natureza humana e da arte. As palavras de Murakami deslizam espontâneas como água de riacho, numa narrativa repleta de camadas de reflexão sobre o sentido da vida e da arte.
Boa leitura!
29
Oct20