12
Mar18
Anotações do quintal
Um passeio pelo quintal. Verde em mudança permanente. Nos quase doze anos em que convivemos, quantas faces já teve. Vida e morte cambiantes numa dança cósmica, bem aqui neste microcosmo do sul da Ilha de Nossa Senhora dos Aterros, como diz o qrido Fabio Brüggemann. Espaço de presenças, e de presença da ausência. Como a das árvores mortas. Uma se foi de velhice. Sua filha, que vi neném, hoje é frondosa e galhuda, se exibe no outono com sementes redondas que os papagaios adoram. Árvore-aquarela com trilha de algazarra. Duas foram derrubadas pelo vento, outras quatro morreram por causa de um aterro de drenagem. Entre elas um presente do inesquecível Augusto Tuyama, a fantástica nim – suas folhas servem pra mais de cem aplicações, como xampu antipulgas e chá pra ressaca.
Tantas outras nascidas ou transplantadas. A pitangueira nativa, germinada no pé de outra árvore. As bananeiras, todas filhas da muda que nos deu o Edson Campos. A amoreira que podei com amor e cresceu linda. Já podei outras com amor e morreram, coisas da vida. Hoje com copa espalhada, é sempre generosa de frutas e tem galhos baixinhos pra criança pequena pegar. Fonte de amora pra suco, vitamina, geleia, tempero, e em breve, sorvete. Ultimamente reparo que tá tendo uma “safrinha” fora da época, observação corroborada pelo Mauro Sniecikowski, também cuidador de amoreira no Sul da Ilha. À sombra dela, nenhum mato cresce, mas uma guabiroba insiste em existir. Miúda, humilde, sempre pegou pouco sol e cresce devagar, mas sólida. Dá uns poucos frutos por ano, como que dizendo “são especiais” e, entre filosófica e irônica, “espere pra ver” e “por que você me antropomorfiza?”.
O limoeiro adolescente sem espinhas, mas com muitos espinhos, produziu seus primeiros seis limões neste verão. As primas tangerinas – uma poncã, outra montenegrina – são meninas, ainda não chegou a hora de dar frutos. O abacateiro também é fiote. Tudo a seu tempo. Tem o tempo dos saguis, ou soins, como dizem lá na minha terra. Eles vêm, acampam, têm filhotes e vão embora quando a comida acaba. Tem que ficar ligado pra não entrarem na cozinha e fazerem bagunça, né Deborah Figueiredo? Tem o tempo das aracuãs, das aves de migração. Das abelhas, das vespas. E tem os moradores fixos, por assim dizer: bem-te-vis, sabiás, curiós. Uns beija-flores que gostam de beijar uma lanterna-japonesa bem do lado da minha rede.
As formigas moram na área, mas aparecem tão pouco que quando chegam a gente pensa que é visita. Às vezes elas encasquetam com uma árvore e ficam trabalhando nela direto por dias a fio, podando as folhas. Meio estressadas, as formigas. Quintal também de minhocas e bactérias, de coisas e seres enterrados, de nosso gato Branquito que aqui descansa em paz. Quintal de Bóris, o lagarto, que morava embaixo do antigo barracão de ferramentas e anda meio sumido. De Lavínia, a lagartixa que encontrei fazendo faxina do depósito. Eu fazia a faxina, no caso. Sementes brotando, maracujás se espalhando, pimenteiras fabricando ardências e temperos. A vida pulsa no quintal e a louça espera na pia da cozinha.
04
Aug16
Conversas de fisioterapia
Tou fazendo fisioterapia pra umas dores de cinquentão e me divirto com as conversas dos colegas estropiados. Tem umas velhinhas que fariam a alegria da Adriane Canan e suas crônicas. Esses dias, uma senhora contou que está casada há quarenta anos. O marido é sério, “não gosta de palhaçada”, e ela tá sempre aprontando. Uma das suas diversões é ir ao Angeloni com ele e se perder de propósito. Aí ela procura a gerência e pede pra botarem um recado pro marido no sistema de som, dizendo que sua mulher o espera lá na frente. Outra: quando ele vai doar sangue no Hemocentro, ela pede pra falar com a enfermeira-chefe e pergunta na frente dele: – Depois de quanto tempo já dá pra fazer um amorzinho?
12
Sep15
Correria de sexta-feira
Chego em casa, o telefone tocando, o alarme entra na contagem regressiva de 30 segundos pra disparar, desligo o alarme e corro pra atender, aí um aviso começa a piscar no micro – restam 5% de bateria, a tomada tá mal colocada -, procuro os óculos e falo amenidades enquanto tento ligar a pessoa ao projeto correto (quem nunca?), a gata começa a miar, encontro os óculos, abro uma planilha e busco por palavra-chave, 4%, consigo fazer a conexão pessoa-projeto, a gata continua miando, 3%, me agacho pra ajeitar o plugue na tomada embaixo da mesa sem soltar o telefone, mais miados, fim do telefonema. Bem-vinda, tarde de sexta-feira no home-office. Vou ali botar a comida da gata.
27
May15
Conversa no supermercado
No supermercado a caixa Nathália Cruz, vinte anos se muito, dá dicas pacientes à colega em treinamento.
- Que banana é essa?
- Caturra – chuta a outra, que empacota e observa.
- Não. É prata, olha a pontinha aqui.
- Que bom que você tem uma boa professora – comento pra novata.
- Eu já estive no lugar dela – diz Nathália.
Falamos da chegada dos imigrantes haitianos e do preconceito de gente que deseja se ver livre “disso”. Ela filosofa, alma antiga:
- É típico do ser humano achar que sofre mais que os outros. Crédito ou débito?
13
Jul14
Copa 2014, um roteiro dos deuses
E hoje termina a Copa do Mundo de 2014. Lá no Olimpo da bola, os deuses roteiristas deste mundial estão inspirados. Derrubaram dois ou três monstros sagrados, elevaram seleções inexpressivas ao estrelato, adicionaram pitadas de canibalismo, traves no meio do caminho, injustiças, oportunismo político, apelo ao heroísmo, reversões de expectativas, lágrimas e consolações, piadas incríveis, thriller policial com fuga, teorias da conspiração, atos covardes e generosos, jogadas de marketing, pedidos de asilo, belíssimas panorâmicas com figurantes de todas as cores e sotaques. E bom futebol. Vi várias partidas bem jogadas – nenhuma foi do Brasil. Considerando o conjunto da obra, não dá pra me queixar. Que venha neste domingo um epílogo de tirar o fôlego. Sei que a memória é fraca e seletiva, mas espero lembrar da Copa de 2014 não só como a da destruição do mito da invencibilidade canarinha, que já não nos serve faz tempo, mas como um grande espetáculo.
30
May14
No caixa eletrônico
Crônica da amiga Adriane Canan, uma mestra na arte da observação do cotidiano.
no caixa eletrônico, bem ao lado do meu:
- ai, errei de novo!
- eu disse pra ti, tu és um tanso. tásh com oitenta anos na cara e não acerta a senha uma vez. deixa pra mim que eu sou mais nova.
ela, uns 70, talvez, toma o lugar dele e começa a tocar a tela do caixa eletrônico.
- como é mesmo a senha?
ele fala baixinho no ouvido dela. ela toca a tela.
- ai, não deu outra vez. culpa tua, não me dissessi direito!
- claro que eu disse -, ele revida e dá uma tossida forte.
- agora tu vásh entrar e pagar lá dentro. três erros a máquina devolve o cartão, já sabesh. vou te esperar ali fora, naquele banquinho, no sol.
ele vai, paciente, até a porta giratória.
- João Carlos -, ela grita.
me assusto, ele também.
- já sabesh que não podes entrar por aí, né? e o marca-passo? o guarda abre pra ti, vai ali, ó.
ele vai, devagar, pra outra porta. ela olha pra mim:
- tenho que cuidar bem, tadinho.
28
Mar13
Um barraco no supermercado
Entrei no supermercado e uma cliente esbravejava na fila. Fiz as compras e, na saída, escolhi a mesma caixa, com quem soube dos detalhes. A cliente tinha vindo com a mãe idosa e ficou indignada porque havia outra mulher na frente delas na fila preferencial. Exigiu prioridade, mas a outra disse que estava grávida.
- Pois prove que você está grávida, prove!
A outra disse que não ia dar a vez e pronto. Aí a incomodada foi reclamar com o gerente, mas ficou tudo por isso mesmo.
Enquanto me contava o ocorrido, a caixa, em período de experiência, ainda tremia um pouco as mãos de nervosa. Outra caixa mais experiente, que ajudava a embalar as compras, tentava acalmá-la.
- Minha filha, você não viu nada ainda. Ontem uma senhora veio reclamar comigo que o atendimento na padaria tinha sido RÁPIDO demais!
15
Sep12
Fênix, Luz e o paiaço
Fênix é um lindo menino equatoriano de quatro anos, que toca flauta, se equilibra na corda bamba, ajuda o pai nas esculturas de madeira e adora manga. A irmã Luz, uma gracinha nascida na Colômbia, tem cinco anos, gosta de cupuaçu e de pintura. O pai deles, peruano que vou chamar de Juan porque esqueci o nome, é o palhaço da trupe, que agora se apresenta sem música. Seu trombone foi furtado por um noiado na rodoviária de Rio Branco. A mãe das crianças, que não chegamos a encontrar, é brasileira. Eles estão viajando há um tempão e a qualquer hora podem cruzar novamente os nossos caminhos pelo Brasil. Nós os conhecemos no centro histórico à margem do rio Acre, e por breves momentos compartilhamos em portunhol uma bonita integração latino-americana. Felicidades, família.
13
Mar12
Sete dias entre a vida e a morte
“… todos te buscam, facho de vida, escuro e claro, todos te buscam e só alguns te acham. Alguns te acham e te perdem. Outros te acham e não te reconhecem e há os que se perdem por te achar…”
Poema de Ferreira Gullar, citado nesta magnífica crônica de Fernando Evangelista no Nota de Rodapé.
01
Oct11
No tempo em que não havia ultrassom
Meu amigo João Augusto Dantas, de Natal, que faz aniversário hoje (“pedalei 98 km de manhã, fui a Nísia Floresta e voltei”), me contou uma história que meu pai contava e eu nem lembrava mais:
No tempo em que não havia ultrassom, um médico de Recife ficou famoso por adivinhar o sexo do bebê ainda na barriga das mães, só de tocar no umbigo delas. Todas as grávidas queriam fazer pré-natal com ele. Até que um dia o médico brigou com a enfermeira e o segredo de seu dom veio a público.
No exame, ele previa: “É um menino”. Mas depois falava pra enfermeira anotar “menina” na ficha, e acertava 50% das vezes. Quando o bebê nascia, algumas mãe reclamavam: “Mas doutor, o senhor disse que era menino, fiz todo o enxoval azul e veio menina!”. Ele, rápido: “Vamos consultar a ficha. Viu aqui? Menina. Foi o que eu tinha dito, mas a senhora, emocionada, se confundiu”.