03

Jan

25

DVeras Awards de Literatura 2023/2024

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Depois de um interlúdio, o DVeras Awards de Literatura está de volta, agora em calendário bienal. A edição 2023/2024 marca uma década desta celebração hedonista e não utilitária da leitura, promovida pelo blog DVeras em Rede.

O certame se inspira na lista dos dez direitos inalienáveis do leitor, de Daniel Pennac (Comme un Roman, 1992). Dois deles, em especial, justificam a pausa na premiação em 2023: o direito de não ler e o direito de calar-se. Exerci ambos sem culpa e agora volto a compartilhar minhas garimpagens.

As histórias deste ciclo vão de saga familiar a crime antigo, de amor bandido a busca existencial, de realismo mágico a poesia em prosa. Elas têm sangue, sexo, sonhos. Têm gato sumido, banho de sol com vizinha, pileque de vinho. Espionagem, equívocos, saudades.

Personagens inquietas nos conduzem pelas ruas de Tóquio, Roma e Cidade do México, por subúrbios barra-pesada de Brisbane, pampas gaúchos, estepes chinesas, apartamentos paulistanos… Histórias muito diversas, mas com uma coisa em comum: passam longe do tédio.

As regras

A coisa funciona mais ou menos assim: estão excluídas as leituras incompletas até 31 de dezembro, assim como as obras técnicas, de referência e lidas por motivos profissionais, exceto quando o prazer superar a utilidade. Controvérsias e casos omissos são decididos de forma irrecorrível pela comissão julgadora – eu mesmo -, que assume os riscos das eventuais tolices e imprecisões.

Os números

Em 2023 e 2024, li por prazer 20 livros de 17 autores de 7 países: Brasil, Austrália, Cuba, Estados Unidos, Japão, México e Reino Unido (a trilogia de Verissimo é contabilizada como um único livro). Só 4 foram escritos por mulheres (é pouco). Há 15 autores vivos, que eu saiba, e conheço 4 pessoalmente. Por gênero, são 13 romances, 5 coletâneas de contos e uma de crônicas. Por idioma, são 15 obras em português – traduções inclusas -, 3 em espanhol e uma em inglês.

A lista

Li duas coletâneas de contos de Lucia Berlin, ganhadora do DVeras Awards de 2019 com o Manual da Faxineira: Noite no paraíso e Bienvenida a casa, ambos de fundo autobiográfico. No segundo livro, ela recorda a vida a partir das casas em que morou. Ficou inacabado com a morte da autora e inclui várias cartas. Sou fã da escrita de Lucia, que transforma o leitor em amigo íntimo com graça e leveza.

Um garimpeiro, um padre, um médium, um detonador, um guia turístico e eu, de Paula Gomes, me fisgou pelo título (meu pai aprovaria; sempre que alguém começava uma enumeração de pessoas com “eu”, ele citava o ditado espanhol: “Y el burrito adelante”). Sua narrativa é inventiva e bem-humorada, cheia de personagens excêntricos e com pinceladas de absurdo. E por falar em absurdo…

A hora dos ruminantes, José J. Veiga, foi uma bela descoberta. Esse romance alegórico publicado em 1966 conta sobre a chegada de forças misteriosas na pacata vila de Manarairema. As presenças perturbadoras incluem homens mudos e autoritários, um exército de cães e uma invasão de bois.

Adiós, Hemingway é um romance policial ambientado em Cuba, que coloca no centro da história o escritor americano em uma trama de assassinato investigada anos depois, quando o ex-detetive Mário Conde é encarregado de descobrir a identidade de um esqueleto encontrado na propriedade de Hemingway. O autor, Leonardo Padura (O homem que amava os cachorros), é dos bons.

Quatro mulheres, de Ricardo Medeiros, é uma reportagem romanceada sobre quatro mulheres que cruzaram a vida do meu amigo jornalista e escritor catarinense. Dare, aeromoça que viajou o mundo pela Varig; Paula, que trabalha cuidando de corpos após a morte; Biba, trabalhadora de serviços gerais, e sua mãe Margaridinha, dona de casa. Bem bom.

O tempo e o vento, de Erico Verissimo, narra a formação do Rio Grande do Sul por meio de gerações das famílias Terra e Cambará. Amor, poder, guerra e identidade se entrelaçam numa saga que atravessa séculos. A obra está dividida em três livros: O Continente, O Retrato e O Arquipélago. Amei. Não vi a série da Globo, mas imaginei o Capitão Rodrigo com a cara do Tarcísio Meira.

Asfalto selvagem: Engraçadinha, seus amores e seus pecados, clássico de Nelson Rodrigues, aborda os dilemas morais e passionais de uma mulher que vive no subúrbio do Rio de Janeiro. É uma crônica de costumes muito bem contada. Também não vi a série da Globo, mas visualizei a protagonista encorpada em Alessandra Negrini e Cláudia Raia.

Softwares livres para jornalistas e profissionais de comunicação, do amigo Gastão Cassel. Li motivado pelo prazer de encontrar um texto de qualidade rara em obras de referência. Traz ótimas dicas de recursos gratuitos para quem deseja evitar as assinaturas de programas de computador. Acho que vai precisar de uma versão atualizada em breve, pois o cenário muda rápido.

Crônica do pássaro de corda, Haruki Murakami. Toru Okada é um homem comum que busca respostas para o desaparecimento da esposa e do gato. Nessa jornada, ele é levado a um mundo fantástico que combina memórias dele e de outros personagens incríveis, sonhos e eventos estranhos. Tem uma subtrama sobre a presença de tropas japonesas na China durante a 2a. Guerra.

O incolor Tsukuru Tazaki e seus anos de peregrinação, do mesmo autor, traz outra busca existencial. Tsukuru Tazaki se considera um homem sem graça, depois de ter sido excluído do convívio com seus melhores amigos de juventude, por motivo que desconhece. Um dia ele resolve enfrentar essa dúvida e parte em busca de explicações, que incluem até mesmo uma viagem à Finlândia. Bonito.

Abandonar um gato, também de Murakami, é um ensaio autobiográfico sobre a relação complicada dele com o pai, em tom honesto e intimista. O autor aborda o impacto da 2a. Guerra sobre a juventude do pai, a partir de uma pesquisa detalhada de alguns eventos marcantes.

The Things They Carried, Tim O’Brien, é uma coleção de contos interligados que aborda as experiências de um grupo de soldados americanos na guerra do Vietnã. O título se refere aos objetos que os personagens carregavam. Muito bem escrito. Tem uma pegada parecida com aquele filme reflexivo sobre a batalha da Guadalcanal (WW2), Além da linha vermelha, de Terrence Malick.

Bambino a Roma, lançado em julho de 2024, é o romance mais recente de Chico Buarque. Traz memórias romanceadas da sua infância em Roma, onde morou entre 1953 e 1954. Interações com a família, colegas de escola e amigos do bairro, passeios de bicicleta, paixões platônicas, tudo contado com a maestria de quem tem domínio perfeito do idioma e da arte de contar histórias.

Contos escolhidos reúne histórias curtas de Aldous Huxley, abordando a condição humana, impactos da modernidade e dilemas morais. Gostei muito de O pequeno Arquimedes, sobre um menino italiano que se revela um gênio da música. Outra ótima é sobre uma mulher inglesa em sua villa italiana, entediada com a monotonia do casamento, que vive um romance extraconjugal. Ótimo “plot twist”.

Famílias terrivelmente felizes, de Marçal Aquino, traz 13 contos com personagens que enfrentam situações-limite do cotidiano, como traições, violências e desejos reprimidos. Com estilo afiado e econômico, Aquino é mestre na narrativa curta. Gostei, mas achei meio desigual. Há contos excelentes e outros nem tanto, mas vale a leitura.

Garoto devora universo, do jornalista australiano Dalton Trent, foi outra boa descoberta. A história se passa no subúrbio de Brisbane e é contada por um garoto de 12 anos que vive situações complicadas com leveza e humor: mãe dependente de heroína, padrasto traficante, irmão mais velho que não fala e é clarividente, pai omisso, babá ex-presidiário. Virou série na Netflix, bem adaptada.

O verão sem homens, de Siri Rustvedt, conta sobre Mia Fredrickson, poeta de 55 anos que sofre um colapso nervoso depois da separação. Para se recuperar, ela se refugia na cidade natal em Minnesota, onde convive com a mãe e um grupo de amigas idosas, além de algumas adolescentes a quem dá aulas de poesia. Bonito. Siri é viúva do escritor Paul Auster, que morreu em 2024.

Salvar el fuego, de Guillermo Arriaga, ganhou o Prêmio Alfaguara de romance em 2020. Aborda um amor intenso e proibido entre uma mulher casada de classe alta, coreógrafa que vive na Cidade do México, e um presidiário condenado à prisão perpétua por assassinatos. Forte e tensa alegoria das contradições da sociedade mexicana. Em 2012, fiz um curso de roteiro com o autor em Curitiba.

Chá de Bolda, de Valério Bolda. Tive a honra de participar desse projeto como revisor e palpiteiro. O autor é um autêntico manezinho de Floripa que, por insistência dos amigos, transformou em livro as crônicas hilárias que publicava no Facebook. A obra seria ilustrada pelo querido Frank Maia, que nos apresentou, mas morreu cedo, então as ilustrações foram feitas pelo competente Galvão Bertazzi.

O resultado

Apontar o melhor livro lido no biênio foi tarefa dificílima, pois tem muita coisa excelente. Para reduzir o volume de impropérios contra sua escolha, a comissão julgadora concedeu algumas menções especiais e lembra a todos de que, no fim das contas, esta é só mais uma lista.

Hors concours: O tempo e o vento. Esse monumento em prosa não deixa nada a dever aos maiores cânones literários. Seria covardia deixá-lo competir.

Melhor romance de estreia: Garoto devora universo. Dalton Trent mandou bem nessa história autobiográfica. Os personagens são adoráveis, embora algumas situações, não muiro verossímeis.

Melhor livro de crônicas: Chá de Bolda. Valério tem habilidade inata pra captar o absurdo e a graça das situações do cotidiano. Torço pra que continue escrevendo.

Melhor livro de contos: Noite no paraíso. Lucia dominava o ofício e sabia se colocar inteira no que escrevia. Viveu com intensidade e compartilhou isso com os leitores.

Medalha de bronze: Crônica do pássaro de corda. Quem acompanha o DVeras Awards sabe da minha admiração por Murakami. Este não é o meu favorito dele (acho que é Norwegian Wood), mas é uma amostra incontestável do talento para construir mundos imaginários que bordejam o real. Confesso que tenho dificuldade de comentar e “rotular” a obra de Murakami, às vezes descrita de forma imperfeita como “realismo mágico japonês”. Ela me afeta além da palavras.

Medalha de prata – Bambino a Roma. “Chega a ser irritante a capacidade que Chico tem de fazer coisas boas”, disse Cadão Volpato em sua resenha dos melhores livros do ano para o Valor Econômico. Bambino a Roma é um delicioso retorno a um período da infância de nosso muso da MPB, quando ele ainda usava calças curtas e passou uma temporada na Itália. Chico combina suas lembranças com recursos ficcionais e assume isso pro leitor. Adorei. Se ele fosse americano, já teria ganhado o Nobel de Literatura pelo conjunto da obra.

E a medalha de ouro do DVeras Awards vai para…

Salvar el fuego. Sabe aquele tipo de livro que você não consegue largar até chegar no fim? Guillermo Arriaga nos faz mergulhar com a cabeça, o coração e as tripas na história de amor entre a coreógrafa Marina e o presidiário José Cuauhtémoc, uma avalanche que não pode ser detida. O romance bebe da experiência dele como roteirista (Amores Brutos, 21 Gramas, Babel) e diretor de cinema (The Burning Plain), mais vai além: é muito bem escrito. Três personagens se alternam na narrativa, que soa autêntica e vigorosa. O resultado é um romance forte, passional, que vai ganhando força à medida que avançamos na leitura. Tem tudo pra virar um belo filme.

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24

Sep

24

Chá de Bolda

Um lançamento muito especial: “Chá de Bolda”, com crônicas hilárias do amigo Valério Bolda. Cometi a revisão. O livro seria ilustrado pelo saudoso Frank Maia, que me apresentou o autor, mas não deu tempo. Ilustrações de Galvão Bertazzi. Dia 11/10 às 18h no Boteco Zé Mané, em Coqueiros, Floripa.

Nas crônicas, que ajudei a selecionar entre seus escritos no Facebook, Bolda navega com elegância e humor natos entre temas cotidianos, passando por histórias de seus pais a causos da adolescência no Estreito, comentários políticos e viagens pelo Cone Sul com a companheira. Ouro puro.

Amigas e amigos do Frank Maia, não deixem de comprar. O livro só saiu por causa da insistência dele com o Bolda, que em sua imensa modéstia, achava as crônicas um monte de bobagens. No último texto, que me fez chorar, ele conta sobre o único encontro que tiveram, num bar em Santo Antônio de Lisboa.

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19

Sep

24

Pour un féminisme décentré

Captura de tela 2024-09-19 161003Acaba de chegar a edição quentinha de “Pour um féminisme décentré: recadrer, resistir” (Por um feminismo descentrado: recontextualizar, resistir), da filósofa tunisiana Soumaya Mestiri. A capa é uma foto minha do mural Pacha Mama, em Bariloche, que também tá aqui no meu perfil.

Da contracapa:

Soumaya Mestiri é professora de filosofia política e social na Universidade de Túnis. Seus trabalhos abordam o liberalismo e as teorias da justiça, assim como as questões de gênero aplicadas ao prisma pós-colonial e decolonial.

Encontrei uma palestra dela no youtube, no canal da Fundação Rosa Luxemburgo de Cooperação Acadêmica.

Mais sobre ela na Wikipedia: Soumaya Mestiri (1976) explora temas relacionados ao feminismo e à relação entre sociedades ocidentais e islâmicas. Seu trabalho recente examina questões sobre democracia no mundo árabe e debates como o uso de burkínis na França.

Fotografei o mural Pacha Mama em 2011, em Bariloche. E até há pouco, não sabia os nomes dos artistas: Horacio Ferrari, Andreina Poli, Agustin Giovaninni e Lau Nitzsche. Todos autorizaram a publicação. O livro saiu por Le Cavalier Bleu, editora feminista de Paris.

Cedi a foto sem custos, com licença Creative Commons. E a editora Anne-Laure Marsaleix gentilmente me enviou três exemplares. Um deles vai me ajudar a desenferrujar o francês. Os outros dois vão pra Biblioteca Universitária e pro Instituto de Estudos de Gênero da UFSC.

 

 

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13

Apr

24

Novos desafios

Outra croniqueta que publiquei na Fired, a revista do desempregado moderno. A inspiração foi um esquete do Porta dos Fundos.

Novos desafios

Chegou na firma e recebeu a boa notícia do chefe: iria ganhar uma oportunidade única de enfrentar novos desafios. Mais detalhes no RH. Munido de carteira de trabalho, essa herança anacrônica da era Vargas, logo soube dos detalhes. Fora promovido a consultor externo, um cargo de alta relevância e autonomia, vinculado apenas informalmente à estrutura organizacional, para não tolher sua liberdade criativa. Em sintonia com as diretrizes modernizadoras da reforma trabalhista, precisaria rescindir o contrato de trabalho e se tornar microempreendedor para continuar prestando seus inestimáveis serviços. Assumiria, naturalmente, os custos de água, energia, internet e cafezinho do home-office, mas com toda a liberdade para escolher os fornecedores e marcas que melhor lhe aprouvessem. Afinal, paternalismo não ajuda nada a estimular o desenvolvimento profissional em um ambiente de livre mercado, e você prefere tomar arábica, não é mesmo? Outra vantagem imensurável: total controle sobre a temperatura do ambiente laboral, um grande passo na conquista da autonomia do eu.

Foi à luta. Comprou pijama novo em dez vezes, contratou contador, conseguiu CNPJ e começou a trabalhar em casa. Em pouco tempo percebeu como expandia os horizontes. Aprendeu a usar os recursos de maneira parcimoniosa e sustentável, para não aumentar a pegada ecológica. Descobriu como alongar o endividamento, como vender almoço para comprar janta. Hoje ele é o feliz CEO de uma empresa enxuta e versátil do ramo de serviços aleatórios. Para maximizar os resultados, acumula responsabilidades: é gestor da prospecção de partículas invisíveis (varre a casa); líder do board de aquisições (faz a feira); manager de recursos animais (cuida dos cachorros), barista (passa o café); alquimista com especialização em sódio (faz a comida); supervisor do fluxo de informações (pesquisa no Google, atende o telefone, recebe o carteiro). Ainda arruma tempo para fazer ginástica laboral (lava o banheiro), cultivar a network (Facebook, Whatsapp) e prestar trabalho voluntário em ações ambientais (separa o lixo e leva pra calçada). É verdade que sua empresa tem enfrentado dificuldades no fluxo de caixa, mas já disponibilizou aos credores um powerpoint com o diagnóstico tranquilizador: é só uma crise passageira nos mercados emergentes, coisas do mundo competitivo e globalizado. Nada que abale sua crença indestrutível no poder da vontade.
~

 Dauro Veras é favorável a medidas de austeridade na gestão organizacional, desde que não mexam no seu queijo.
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13

Apr

24

Hora de expediente

Uma crônica minha publicada em maio de 2015 na Fired, a revista do desempregado moderno.

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Hora de expediente

No intervalo do cafezinho, o chefe colocou a mão em seu ombro:

— Odair?

— Pois não, doutor Osvaldo?

— Quando terminar aí, dê uma passadinha na minha sala.

Uma hora depois, caminhava sem rumo pelas ruas do centro, o nó frouxo da gravata, a cópia do bilhete azul em uma das mãos, a pasta com documentos inúteis na outra. Na cabeça, alternava o mantra de um xingamento à genitora do doutor Osvaldo com a dúvida obsessiva: como eu vou contar pra Marlinda?

Tudo caminhava tão bem. Recém-casados, tinham acabado de comprar a tevê de tela plana em doze vezes, o carrinho japonês em quarenta e oito prestações, o guarda-roupas nas Casas Bahia, primeiro pagamento só depois do Carnaval.

Encheu a caveira no boteco e chegou em casa depois da novela. Marlinda o esperava na cama, de baby-doll transparente, segurando aquele vibrador duplo que compraram pela internet — seis vezes sem juros —, mas ele desmaiou ao lado dela para uma noite de sonhos inquietos.

Na manhã seguinte, acordou se sentindo um inseto de ressaca, barbeou-se, vestiu o terno cinza, beijou a mulher sonolenta e saiu. Na padaria, café com pão puro.

— Sem margarina é mais barato que sem manteiga — brincou com a balconista, pela força de hábito.

O que fazer? Enquanto pesava as alternativas, melhor não contar nada à mulher. Chegar em casa com um problema, em vez de uma solução? Para todos os efeitos, continuava empregado com carteira assinada. Como fora dispensado do aviso prévio, teria de arrumar o que fazer durante o dia, enquanto fingia que trabalhava. Menos mal que o Fundo de Garantia daria para os próximos dois ou três meses. Morrer de fome não morreriam, pois tinham o salário de Marlinda como operadora de telemarketing. Precisariam fazer alguns sacrifícios, claro, mas com um pouco de disciplina orçamentária, talvez nem fosse preciso devolver o vibrador.

Chegou à praça e se sentiu um pouco melhor. Ali seria o “escritório” ideal durante o horário do expediente. Sentou-se num banquinho, ao lado de uma pessoa que lia um jornal. Aquela mulher não lhe era estranha. Olhou por cima do jornal e tomou um susto:

— Linda?!

— Dodó?!

— Você não devia tar no trabalho?

— Benhê… Preciso estar lhe contando uma coisa…Perdi o emprego. Faz uma semana que venho aqui toda manhã matar o tempo e olhar os classificados.

— É mesmo? Eu também. Hoje é meu primeiro dia.

Caíram juntos na risada, se abraçaram e voltaram de mãos dadas para casa, onde curtiram uma sessão de sexo selvagem. No dia seguinte, Odair e Marlinda acordaram perto do meio-dia, vestiram as roupas de banho, colocaram o frescobol na sacola e foram à praia. Viveriam de amor.

~

Pedrosa da Silva é doutor em estudos híbridos pela Metatag University e especialista em redes de algodão cru. Por motivos religiosos, nunca trabalha às terças, quintas e sábados. Às segundas, quartas, sextas, por motivos profanos, dedica-se às artes cínicas. Aos domingos vai à praia.
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09

Jun

22

Meu amigo Frank Maia

Frank Maia. Foto: Dauro Veras

Frank Maia. Foto: Dauro Veras

Frank gostava de contar que, da primeira vez que me conheceu, me achou chato. Era uma assembleia de estudantes do jornalismo da UFSC e eu tinha falado sobre o processo democrático de uma votação qualquer, uma bobagem de que nenhum de nós lembrava mais. Passada ou confirmada a primeira impressão, viramos amigos-irmãos. Daquelas amizades que se faz aos vinte anos e se transformam nos grandes tesouros da vida.

Sempre tínhamos alguma coisa a mais pra contar. Um comentário de filme, uma pessoa ou lugar que um queria apresentar ao outro, um relato de viagem. Um combinado de festa, um trabalho, uma música ou emoção ou receita que era urgente compartilhar. Carnavais. Nascimentos dos filhos, aniversários de criança, muito balão soprado. Trilhas, violão, praia e montanha, papos na calçada sobre política e amor. Telefonemas às duas da madrugada pra falar de tudo e nada, visitas inesperadas, desabafos. Momentos em que ficávamos meio de saco cheio, aí passávamos meses sem nos ver. Nos últimos anos, mensagens quase diárias no zap, que dispensavam bom dia e outras amenidades, pois faziam parte da mesma e interminável conversa.

Parecia permanente a presença dele, mas chegou ao fim neste 5 de junho de 2022, quando o coração e outros órgãos do meu brother não resistiram mais à luta. Desde então, tenho vivido dias de perplexidade, ainda tentando me acostumar com o silêncio. Li homenagens que os amigos e conhecidos estão escrevendo sobre o Frank. Em todas, a mesma essência verdadeira: era um cara talentoso, generoso, leve, despojado das coisas materiais, apaixonado pela vida. Tinha uma habilidade magnética de transformar qualquer ambiente onde chegava. Ele sabia tratar desconhecidos como se fossem velhos amigos. Nisso se parecia muito com meu pai, João Camillo e com meu irmão Camillo; Frank conviveu com ambos, e agora os três estão na mesma poeira cósmica.

Dauro e Frank no Tralharia. Foto: Sérgio Vignes

Dauro e Frank no Tralharia. Foto: Sérgio Vignes

Expansivo e bem humorado, Frank tinha também consciência social avançada. Seu antifascismo era uma marca constante no trabalho, mas as charges dele vão além, contam muito das miudezas e absurdos cotidianos que dão tempero à vida. As véias, por exemplo, são personagens icônicos do Frank. Guardo com carinho a minha caneca “Café não custuma faiá”. Sempre fui admirador do seu talento pra fazer o público rir todos os dias, usando uma das formas de expressão mais difíceis do jornalismo. Suas charges ácidas, com influência confessa de três feras sagradas – Henfil, Angeli e Laerte -, são hoje documentos do nosso tempo.

Guardo a imagem do Frank como um cara que amava a vida e se jogava no amor. Que gostava de beijar, dançar e ouvir música, ler livro bom, desenhar (sempre), estar com as filhas e filho e neto, dar risada rodeado de gente boa. Meu amigo tirou a sorte grande ao encontrar sua companheira Patrícia Bolsoni, por quem se apaixonou num nível ultra power. Que lindo casal com as quatro meninas, duas filhas de cada um. “Tu és bendito entre as mulheres”, eu dizia pra ele. Assim foi.

Pra quem teve a puta sorte de conviver com o Frank Maia, fica a sensação de que o cabra tirou o time cedo demais, mas queimou com intensidade. Perdi um confidente, e nossa conversa de 36 anos fica agora guardada na memória do afeto. Que bom que a memória do afeto é também coletiva, é nas coisas que se lembra junto. E nela o Frank vai continuar com a gente, em muitos tributos que virão. Com música, natureza, comida gostosa, amizade e risadas, do jeito que ele gostaria.

Frank, Rogério Mosimann e Dauro Veras. Foto: Frank Maia

Frank, Rogério Mosimann e Dauro Veras. Foto: Frank Maia

Na última vez em que conversamos, passei a noite ao seu lado no hospital e, na saída, perguntei se tinha algum recado pro mundo. Ele me respondeu: “Diga que tou vivo pra cachorro!” Então, se ele tá dizendo, que seja. Camarada Frank, presente!

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31

Dec

21

DVeras Awards de Literatura 2021

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Irmã leitora, irmão leitor,

Chegou a hora de anunciar os resultados da 15a. edição do DVeras Awards de Literatura, celebração anual da leitura por prazer, promovida pelo blog DVeras em Rede. Nosso patrono (ele ainda não sabe) é Daniel Pennac, autor da lista com os dez direitos inalienáveis do leitor. Em 2021 eu exerci quatro deles de forma continuada e sem culpa: o direito de não terminar um livro; o de reler; o de ler qualquer coisa, e o de ler uma frase aqui e outra ali. Portanto, não espere uma lista muito extensa.

No segundo ano da praga viral e terceiro da peste familiciana, concluí 18 livros, igualando a marca de 2020 e a média de um livro a cada três semanas. Os temas foram da ficção científica ao crime, passando por política e amor, música e História, filosofia e ciência, humor e autoconhecimento. Por gênero, foram nove romances, duas grandes reportagens, duas coletâneas de contos, duas de ensaios e uma de crônicas, além de um livro de poemas e uma biografia. Os países de origem dos 15 autores homens e quatro mulheres são Austrália, Argentina, Brasil, Estados Unidos, Japão, Peru, Rússia e Suécia.  Algumas menções honrosas por categoria:

  • De pirar o cabeção: Quarantine, sci-fi de Greg Egan
  • Caliente: hai quases, poemas de Lilian Schmeil
  • Melhor leitura de banheiro: Vai dar merda, crônicas de Cláudio Schuster
  • Releitura: A invenção de Morel, sci-fi de Bioy Casares
  • Pra ler ouvindo música: Can’t Buy Me Love, biografia dos Beatles por Jonathan Gould
  • Necessário: A república das milícias: dos esquadrões da morte à era Bolsonaro, reportagem de Bruno Paes Manso
  • Dava um filme: Baixo esplendor, romance de Marçal Aquino, empatado com Nove histórias errantes, contos de Márcia Feijó

A lista de concorrentes, pela ordem cronológica em que foram concluídos:

  1. A invenção de Morel, Adolfo Bioy Casares
  2. A república das milícias: dos esquadrões da morte à era Bolsonaro, Bruno Paes Manso
  3. Quarantine, Greg Egan
  4. Mossad: os carrascos do kidon, Eric Frattini
  5. Crime e castigo, Fiódor Dostoiévski
  6. Homens sem mulheres, Haruki Murakami
  7. South of the Border, West of the Sun, Haruki Murakami
  8. After Dark, Haruki Murakami
  9. Pontos de fuga: o lugar mais sombrio, Milton Hatoum
  10. O homem que sorria, Henning Mankell
  11. Can’t Buy Me Love, Jonathan Gould
  12. Um casamento americano, Tayari Jones
  13. Baixo esplendor, Marçal Aquino
  14. A Field Guide to Getting Lost, Rebecca Solnit
  15. Algoritmos para viver: a ciência exata das decisões humanas, Brian Christian e Tom Griffths
  16. Nove histórias errantes, Márcia Feijó
  17. hai quases, Lilian Schmeil
  18. Vai dar merda, Cláudio Schuster

E os três premiados são…

Bronze: Um casamento americano, de Tayari Jones. O romance dessa professora de literatura nascida em Atlanta, EUA, ganhou o Prêmio de Mulheres para Ficção em 2019. Conta de um jovem casal de negros, apaixonados e em ascensão profissional, que têm as vidas transtornadas pela prisão e condenação do homem por um crime. A narrativa se alterna entre diferentes pontos de vista e aborda temas ligados a racismo, machismo, resiliência, transformação e superação. História bonita e bem contada.
Prata: A Field Guide to Getting Lost, de Rebecca Solnit. A escritora americana discorre sobre perdas e o ato de se perder, tanto em sentido figurado quanto físico. Ela combina referências históricas, da literatura e da arte com suas memórias afetivas, transitando por encontros amorosos no deserto, mapas e outros objetos simbólicos, fragmentos biográficos da avó imigrante, a ausência de uma amiga que morreu jovem, uma casa marcante da infância… Li sem pressa. Tem altos e baixos, mas no geral a impressão é de encantamento.
Ouro: depois de dez anos esperando na estante, Crime e castigo, de Fiódor Dostoiévski, entrou pra minha lista de leituras concluídas. E vai direto pro topo do pódio. O que acrescentar ao que já foi dito sobre esse romance, que influenciou tanta gente boa e é considerado uma das joias da literatura universal? Gostei! Conta sobre o homicídio de uma velha agiota e sua filha por um ex-estudante, pobre e angustiado pra dar algum sentido à vida. Podia ser só uma história banal, mas na pena do escritor russo, esse enredo vira um mergulho nas tormentas da natureza humana. A ideia da redenção por meio do sofrimento é só uma das reflexões possíveis em uma obra multifacetada, que merece releituras.
Uma vez me disseram que ler torna as pessoas melhores. Se melhoramos mesmo, não sei, mas dificilmente vamos ficar pior ou nos converter ao terraplanismo, o que já é grande coisa. A comparação com coletes salva-vidas me parece boa. Vamos precisar muito dos livros pra manter a cabeça fora d’água e reconstruir o país. Desejo que, no meio das tempestades, você encontre serenidade suficiente pra dedicar um tempinho a eles e ajudá-los a circular. Feliz 2022!
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28

Mar

21

Voluntário da Pátria: um conto de Camillo Veras

Meu bisavô cearense escapou de ser “voluntário da pátria” na guerra do Paraguai. Sua aventura é descrita neste conto escrito pelo meu irmão Camillo Veras, que morreu em 25 de janeiro de 2020. É “uma história antiga, dos tempos dos escravos”. Relendo hoje, percebo como a narrativa revela um olhar de historiador em pinceladas como a descrição da paisagem, do ambiente social onde conviviam sertanejos, índios e onças. Ele era jornalista, mas sempre gostou de História. E de contar histórias. Camarada Camillo, presente!

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Voluntário da Pátria

O sol ainda aparecia no horizonte e a lua cheia despontava, desafiando o dia. Meninos surgiam por todos os lados e iam se acomodando nas esteiras de palha estendidas, às dúzias, pelo terreiro, encostadas nas carnaúbas. Era hora de escutar história, conversas, como ainda se falava naquele tempo.
Nesta noite, a tia… (nem lembro o nome dela) ia contar mais uns causos antigos do avô dela, que ela nem lembrava direito. Nem conhecera. Olha que coisa mais velha. Se a tia já era velha, imagina o vô dela…! Bom, era uma história antiga dos tempos dos escravos…
A tropa caminhava em fila única, pela trilha entre os carnaubais, ainda enlameada da chuva da tarde. De arma em punho, que era para assustar os voluntários da pátria, que de voluntários só tinham o nome. Marchavam junto aos soldados, com as mãos amarradas para trás e um cano de espingarda cutucando as costas, de quando em quando, para lembrar que iam para a guerra defender a pátria e o Imperador. Eles nem conheciam muito dessas coisas e nunca tinham ouvido falar no Paraguai, mas com a arma engatilhada nas costas não tinham a menor vontade de reclamar ou perguntar nada.
O vento do Aracati já tinha espantado o calor daquela tarde quando o mateiro, que guiava a tropa, alertou para apressarem o passo se quisessem chegar ao rio antes de escurecer. Naquele ano o inverno tinha sido bom, ainda chovia e o Jaguaribe tinha se espalhado pela várzea. A travessia era difícil. Dormir do lado de cá ia atrasar a tropa, que ainda tinha que andar várias léguas para chegar no Aracati, de onde partiria o navio. Além disso, ainda havia algumas tribos papuias e anacés selvagens pela região e muita onça, que eram um perigo para um grupo pequeno como aquele.
Os homens estavam cansados. Eram fortes, mas o sol, o peso do equipamento e a caminhada na caatinga massacravam. Caminhavam a passos curtos. Já se enxergava a serra do Ereré, quase na margem do rio, do lado de lá, mas eles viram que não dava para chegar antes do anoitecer e o desânimo tornou o ritmo ainda mais lento.
Muitos dos soldados tinham sido recrutados do mesmo modo que os pobres coitados que eles agora caçavam nos vilarejos, mas a vida dura e a disciplina rígida os transformaram. Não eram mais povo e sim soldados. Há várias semanas andavam por vilarejos no Vale do Jaguaribe à procura de “voluntários”. Tinham ido até São Bernardo de Russas, passado por Quixeré, União, Cruz do Palhano, Rancho do Povo, Tomé Afonso e outros lugarejos perto do rio.
A rotina era a mesma. Procuravam o padre ou o intendente e anunciavam que estavam em busca de homens jovens para lutar na guerra contra o Paraguai. Defender o Império. A pátria. Alguns fazendeiros mais ricos tinham se engajado e ganhado patentes de oficial, mas a maioria dos homens de posse escondia seus filhos em idade de ir pra luta. E também as filhas, que costumavam se encantar, ou às vezes ser encantadas, por aqueles soldados. Voluntários mesmo só alguns presos e gente que não tinha o que perder. Filho de pobre ia na marra.
No final da fila, um dos voluntários começou a mancar. Levou umas coronhadas, mas conseguiu diminuir o ritmo da marcha e se afastar um pouco dos que iam à frente. Num átimo de sorte, o soldado parou para urinar e o empurrou para o lado, aproveitando a escora de uma tamarineira à beira de um barranco. A hora era aquela. O jovem preso chutou forte o soldado, que rolou pelo barranco, e aproveitou para correr.
O grito assustou os outros soldados, que voltaram e deram uns tiros às cegas. Mas ele não estava mais lá. Perderam um tempo para ajudar o colega a sair do buraco e nem pensaram em caçar o fugitivo naquela escuridão que caía. Seguiram em frente.
O voluntário correu várias horas com as mãos amarradas para trás, sem parar e nem mesmo sentir as juremas e outros arbustos espinhosos que laceravam sua pele. Segundo contou mais tarde para os amigos, “correu umas três léguas”. A escuridão já tomava conta da mata quando ele tropeçou e caiu de novo. Dessa vez num pequeno riacho, onde deslizava um filete d’água. Matou a sede e, tateando no escuro, achou uma pedra e cortou a corda que apertava seus punhos. Estava cansado, os pés ardiam depois da longa corrida e os braços doíam, após horas amarrados na mesma posição e de várias quedas. Mas ele sabia que beira de riacho não era lugar seguro para descasar numa área conhecida por ter muitas onças. Pintadas e vermelhas saiam à noite para matar a sede nos pequenos córregos como aquele, e aproveitavam para comer.
Desde pequeno ouvia falar de pintadas e vermelhas na região e sabia que nome do rio vinha de jaguar, como os índios chamavam as onças. Chamavam também de suçuarana. Ele mesmo só tinha visto uma vez, mas conhecia muita história de onça. Diziam que depois de serem massacradas pelos primeiros colonos portugueses, que criavam gado na região, elas perderam o medo e até passavam a gostar de carne de gente. Uma vez foi a uma caçada com o pai, tios e uns primos e depois de andar uma noite toda seguiram o rastro de um veado. De repente apareceu uma vermelha. A bichona também estava atrás da caça, mas se assustou com os caçadores e subiu num pau-d’arco. Ele já vinha com a arma engatilhada, mas o pai segurou seu braço e disse.
- Deixa pra lá, menino. Bicho que não serve para comer não se mata. E ela nem ia fazer nada “com nós”. Ela só queria o veado porque está com fome.
Aquela história foi uma lição para ele aprender a respeitar animal e só matar para comer.
Mas perdido no mato à noite e sozinho, a recordação deu mais medo e ele lembrou que não podia ficar ali. Procurou a alpercata, que tinha perdido depois de tropeçar, mas não achou. Seguiu com um pé calçado e outro no chão. Desde pequeno ele andava na mata, mas o chão pedregoso castigava o pé descalço. Não dava mais para correr, mas andou a noite toda, parando só para descansar e matar a sede nos riachos e olhos d’água que encontrava. Já era quase dia quando chegou perto de uma casa. Os animais alertaram e o dono deu um tiro pra cima. Pensou que eram os soldados e caiu novamente no mato.
O sol já estava claro quando ele finalmente chegou num rio. Estreito, não podia ser o Jaguaribe. Seguiu o curso da água e logo percebeu que estava novamente perto da Serra do Areré. Passara a noite caminhando em círculo. Por sorte, os soldados tinham cruzado o Jaguaribe ao por do sol. Horas antes. Agora ele sabia onde estava. Descansou e logo depois partiu, agora no claro e pela beira do rio.
Antes do meio dia estava na casa do pai, onde ficou sabendo que outra patrulha estava a procura de novos voluntários e de fugitivos. Na mesma noite, namorou, noivou e casou com a prima de treze anos, a única moça solteira e descomprometida do vilarejo. Casados não podiam ser “voluntários”, e ele escapou de ir servir a pátria. Dos que foram ao Paraguai, da sua cidade, nenhum voltou. Ele viveu quase cem anos, teve um monte de filhos e ainda contou essa história aos netos.
Camillo Veras
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15

Mar

21

Focinho de bezerro

“Comida gostosa, apimentada, temperos fortes. Para a saúde, vai ver não fosse bom, era reimoso; mas a mulher se ria, perto dela não se podia pensar em coisas mofinas. Achava fio de cabelo dela, não tinha repugnância, não se importava. – ‘Bem: eu cuspisse dentro da sopa, você tinha escrúpulo de tomar? Você gosta de mim de todo jeito?’ Asco nenhum. O cuspe dela, no beijar, tinha pepego, regosto bom, meio salobro, cheiro de focinho de bezerro, de horta, cheiro como cresce redonda a erva-cidreira”.
~ Guimarães Rosa. Dão-Lalalão (O Devente), em Noites do Sertão.
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24

Feb

21

Lendo: Up In The Old Hotel

Up In The Old Hotel. Coletânea de perfis escritos por Joseph Mitchell para a New Yorker entre o fim da década de 1930 e 1964. Uma aula de jornalismo. Dica do Yan Boechat.

mitchell

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