28
Mar21
Voluntário da Pátria: um conto de Camillo Veras
Meu bisavô cearense escapou de ser “voluntário da pátria” na guerra do Paraguai. Sua aventura é descrita neste conto escrito pelo meu irmão Camillo Veras, que morreu em 25 de janeiro de 2020. É “uma história antiga, dos tempos dos escravos”. Relendo hoje, percebo como a narrativa revela um olhar de historiador em pinceladas como a descrição da paisagem, do ambiente social onde conviviam sertanejos, índios e onças. Ele era jornalista, mas sempre gostou de História. E de contar histórias. Camarada Camillo, presente!
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Voluntário da Pátria
O sol ainda aparecia no horizonte e a lua cheia despontava, desafiando o dia. Meninos surgiam por todos os lados e iam se acomodando nas esteiras de palha estendidas, às dúzias, pelo terreiro, encostadas nas carnaúbas. Era hora de escutar história, conversas, como ainda se falava naquele tempo.
Nesta noite, a tia… (nem lembro o nome dela) ia contar mais uns causos antigos do avô dela, que ela nem lembrava direito. Nem conhecera. Olha que coisa mais velha. Se a tia já era velha, imagina o vô dela…! Bom, era uma história antiga dos tempos dos escravos…
A tropa caminhava em fila única, pela trilha entre os carnaubais, ainda enlameada da chuva da tarde. De arma em punho, que era para assustar os voluntários da pátria, que de voluntários só tinham o nome. Marchavam junto aos soldados, com as mãos amarradas para trás e um cano de espingarda cutucando as costas, de quando em quando, para lembrar que iam para a guerra defender a pátria e o Imperador. Eles nem conheciam muito dessas coisas e nunca tinham ouvido falar no Paraguai, mas com a arma engatilhada nas costas não tinham a menor vontade de reclamar ou perguntar nada.
O vento do Aracati já tinha espantado o calor daquela tarde quando o mateiro, que guiava a tropa, alertou para apressarem o passo se quisessem chegar ao rio antes de escurecer. Naquele ano o inverno tinha sido bom, ainda chovia e o Jaguaribe tinha se espalhado pela várzea. A travessia era difícil. Dormir do lado de cá ia atrasar a tropa, que ainda tinha que andar várias léguas para chegar no Aracati, de onde partiria o navio. Além disso, ainda havia algumas tribos papuias e anacés selvagens pela região e muita onça, que eram um perigo para um grupo pequeno como aquele.
Os homens estavam cansados. Eram fortes, mas o sol, o peso do equipamento e a caminhada na caatinga massacravam. Caminhavam a passos curtos. Já se enxergava a serra do Ereré, quase na margem do rio, do lado de lá, mas eles viram que não dava para chegar antes do anoitecer e o desânimo tornou o ritmo ainda mais lento.
Muitos dos soldados tinham sido recrutados do mesmo modo que os pobres coitados que eles agora caçavam nos vilarejos, mas a vida dura e a disciplina rígida os transformaram. Não eram mais povo e sim soldados. Há várias semanas andavam por vilarejos no Vale do Jaguaribe à procura de “voluntários”. Tinham ido até São Bernardo de Russas, passado por Quixeré, União, Cruz do Palhano, Rancho do Povo, Tomé Afonso e outros lugarejos perto do rio.
A rotina era a mesma. Procuravam o padre ou o intendente e anunciavam que estavam em busca de homens jovens para lutar na guerra contra o Paraguai. Defender o Império. A pátria. Alguns fazendeiros mais ricos tinham se engajado e ganhado patentes de oficial, mas a maioria dos homens de posse escondia seus filhos em idade de ir pra luta. E também as filhas, que costumavam se encantar, ou às vezes ser encantadas, por aqueles soldados. Voluntários mesmo só alguns presos e gente que não tinha o que perder. Filho de pobre ia na marra.
No final da fila, um dos voluntários começou a mancar. Levou umas coronhadas, mas conseguiu diminuir o ritmo da marcha e se afastar um pouco dos que iam à frente. Num átimo de sorte, o soldado parou para urinar e o empurrou para o lado, aproveitando a escora de uma tamarineira à beira de um barranco. A hora era aquela. O jovem preso chutou forte o soldado, que rolou pelo barranco, e aproveitou para correr.
O grito assustou os outros soldados, que voltaram e deram uns tiros às cegas. Mas ele não estava mais lá. Perderam um tempo para ajudar o colega a sair do buraco e nem pensaram em caçar o fugitivo naquela escuridão que caía. Seguiram em frente.
O voluntário correu várias horas com as mãos amarradas para trás, sem parar e nem mesmo sentir as juremas e outros arbustos espinhosos que laceravam sua pele. Segundo contou mais tarde para os amigos, “correu umas três léguas”. A escuridão já tomava conta da mata quando ele tropeçou e caiu de novo. Dessa vez num pequeno riacho, onde deslizava um filete d’água. Matou a sede e, tateando no escuro, achou uma pedra e cortou a corda que apertava seus punhos. Estava cansado, os pés ardiam depois da longa corrida e os braços doíam, após horas amarrados na mesma posição e de várias quedas. Mas ele sabia que beira de riacho não era lugar seguro para descasar numa área conhecida por ter muitas onças. Pintadas e vermelhas saiam à noite para matar a sede nos pequenos córregos como aquele, e aproveitavam para comer.
Desde pequeno ouvia falar de pintadas e vermelhas na região e sabia que nome do rio vinha de jaguar, como os índios chamavam as onças. Chamavam também de suçuarana. Ele mesmo só tinha visto uma vez, mas conhecia muita história de onça. Diziam que depois de serem massacradas pelos primeiros colonos portugueses, que criavam gado na região, elas perderam o medo e até passavam a gostar de carne de gente. Uma vez foi a uma caçada com o pai, tios e uns primos e depois de andar uma noite toda seguiram o rastro de um veado. De repente apareceu uma vermelha. A bichona também estava atrás da caça, mas se assustou com os caçadores e subiu num pau-d’arco. Ele já vinha com a arma engatilhada, mas o pai segurou seu braço e disse.
- Deixa pra lá, menino. Bicho que não serve para comer não se mata. E ela nem ia fazer nada “com nós”. Ela só queria o veado porque está com fome.
Aquela história foi uma lição para ele aprender a respeitar animal e só matar para comer.
Mas perdido no mato à noite e sozinho, a recordação deu mais medo e ele lembrou que não podia ficar ali. Procurou a alpercata, que tinha perdido depois de tropeçar, mas não achou. Seguiu com um pé calçado e outro no chão. Desde pequeno ele andava na mata, mas o chão pedregoso castigava o pé descalço. Não dava mais para correr, mas andou a noite toda, parando só para descansar e matar a sede nos riachos e olhos d’água que encontrava. Já era quase dia quando chegou perto de uma casa. Os animais alertaram e o dono deu um tiro pra cima. Pensou que eram os soldados e caiu novamente no mato.
O sol já estava claro quando ele finalmente chegou num rio. Estreito, não podia ser o Jaguaribe. Seguiu o curso da água e logo percebeu que estava novamente perto da Serra do Areré. Passara a noite caminhando em círculo. Por sorte, os soldados tinham cruzado o Jaguaribe ao por do sol. Horas antes. Agora ele sabia onde estava. Descansou e logo depois partiu, agora no claro e pela beira do rio.
Antes do meio dia estava na casa do pai, onde ficou sabendo que outra patrulha estava a procura de novos voluntários e de fugitivos. Na mesma noite, namorou, noivou e casou com a prima de treze anos, a única moça solteira e descomprometida do vilarejo. Casados não podiam ser “voluntários”, e ele escapou de ir servir a pátria. Dos que foram ao Paraguai, da sua cidade, nenhum voltou. Ele viveu quase cem anos, teve um monte de filhos e ainda contou essa história aos netos.
Camillo Veras
08
Dec20
Kjeld Jakobsen, presente!
O mundo fica mais pobre sem Kjeld Jakobsen, uma pessoa especial que a vida me deu a sorte de encontrar. Conheci o Kjeld em 2002 quando fui contratado pelo Instituto Observatório Social, que ele presidia – um belo projeto de cooperação internacional envolvendo a CUT e centrais sindicais da Holanda, Alemanha e Estados Unidos.
Em poucos meses de trabalho, me coube a missão de acompanhá-lo a Santiago do Chile para um evento de trabalhadores de países hermanos. Tempo de esperança na possível eleição de Lula, que concorria à presidência pela quarta vez, e na mudança dos ventos na América Latina, que de fato ocorreu. Tivemos longas conversas sobre geopolítica e acompanhei atento a sua participação no encontro, um grande aprendizado de como é possível focar no que aproxima as pessoas, em vez de insistir nas diferenças.
Nos quatro anos em que trabalhamos juntos, embora em cidades diferentes – ele em São Paulo, eu em Floripa – convivemos em inúmeras ocasiões. Ele tinha o o talento inato de articulador, a habilidade de mediar conflitos de forma serena e fundamentada, costurar acordos difíceis que ampliaram direitos dos trabalhadores em várias empresas multinacionais com operações no Brasil. Chefe competente e ponderado, tinha um conhecimento tão vasto quanto a sua generosidade com os colegas, sua simplicidade e vontade de fazer do mundo um lugar mais justo.
Kjeld acreditou no jornalismo como instrumento relevante pra investigação de denúncias de violações de direitos humanos. Graças ao seu apoio decisivo, publicamos várias reportagens na Revista do Observatório Social sobre temas como trabalho escravo e infantil, assédio moral, mutilação na indústria, desmatamento ilegal e exploração de imigrantes, vinculando essas violações à cadeia produtiva de grandes corporações multinacionais. Não raras vezes, o desgaste da reputação dessas empresas provocou pressões que levaram a mudanças concretas nas relações de trabalho e na vida das pessoas. Os prêmios conquistados com a revista (Esso, Vladimir Herzog e outros) foram consequência do trabalho de uma galera idealista, que vivia dando risada, sabendo que o chefe nos incentivava e apoiava. Em retrospecto, vejo hoje que foi a redação dos sonhos. E ele sonhava com a gente.
Não tenho palavras boas o bastante pra expressar a tristeza com essa perda, pra contar da importância que o Kjeld teve na minha trajetória profissional e na de tantos outros. Morreu um homem de valor, parceiro dos que resistem. Meu abraço à família e a todos que foram tocados por sua presença. Seguimos.
27
Sep12
Fotossensível
O curta-metragem Fotossensível, disponível para ver e baixar no site Filmes que Voam, é uma reflexão delicada sobre a memória e o tempo, a partir das filmagens cotidianas e lembranças que a diretora Cristina Kreuger guarda de sua família. Neta de suecos, nascida em Itajaí há 25 anos, a cineasta recuperou imagens amadoras feitas por seu avô na década de 1940 com uma câmera 16 mm, e depois por seu pai em uma Super-8. Nesta entrevista, Kike, como é conhecida pelos amigos, conta como foi o processo de criação e produção.
O trailer do filme: