O valor estratégico da pegada hídrica
Dauro Veras
Para o Valor, de Florianópolis
O total de água incorporada aos produtos que saem pelos portos brasileiros chega a 112 trilhões de litros anuais, equivalentes a 45 milhões de piscinas olímpicas, segundo estudo da Unesco. Esse volume coloca o Brasil em quarto lugar no ranking de exportadores brutos do recurso, atrás dos Estados Unidos, China e Índia. Embora ainda não seja contabilizada nas trocas comerciais, a água virtual tende a ganhar valor estratégico em um cenário mundial de escassez hídrica. Isso abre oportunidades para o protagonismo do Brasil, que dispõe do recurso em abundância, mas precisa avançar na sua conservação.
Um instrumento de pesquisa relevante na área é a “pegada hídrica” (“water footprint”, em inglês), criada em 2002 pelo pesquisador Arjen Hoekstra (leia entrevista), da Universidade de Twente, Holanda, para calcular o uso direto e indireto da água, tanto por produtores quanto por consumidores na cadeia produtiva. A pegada hídrica média do consumidor brasileiro é de 5.550 litros por dia, uma vez e meia superior à média global, principalmente por causa do grande consumo de carne.
“Nas próximas décadas, um número crescente de países tentará garantir terra e água em outros lugares, como a China está fazendo na África”, afirma Hoekstra. “Por um lado, a abundância de água é positiva para o Brasil, mas também significa que a pressão sobre os recursos internos deve continuar crescendo, à custa do meio ambiente e das populações locais”. Ele ressalta que o uso da água em si não é um problema, se ela for integralmente retornada limpa ao sistema.
Culturas oleaginosas – como a soja –, cereais, café, produtos de origem bovina, cana-de-açúcar, algodão e commodities industriais são os itens que mais contribuem para a elevação da pegada hídrica. “Como distribuir água é uma questão política”, diz o cientista. “O maior problema é o excesso de alocação, pois tanto a natureza quanto as pessoas sofrem quando não há definição clara de prioridades”.
A pegada hídrica se subdivide em três componentes: verde, correspondente à chuva evaporada ou incorporada em produtos; azul, que calcula o mesmo em relação às águas superficiais ou subterrâneas; e cinza, que mede o volume necessário para diluir a poluição gerada no processo produtivo. Essa metodologia tem contribuído para definir boas práticas em diferentes contextos. Um exemplo é programa Água Brasil, parceria entre Agência Nacional de Águas (ANA), Fundação Banco do Brasil e WWF-Brasil para desenvolver projetos socioambientais em sete microbacias de quatro biomas.
“A pegada hídrica é um importante indicador para o nosso trabalho, em que mostramos aos agricultores como eles podem obter retorno financeiro ao investir na preservação”, diz o coordenador do programa pela WWF-Brasil, Cristiano Cegana. Em três das sete bacias, é realizado o Pagamento por Serviços Ambientais, que remunera os produtores pela restauração de matas ciliares, conservação de fragmentos florestais e práticas de conservação do solo.
Para o professor do Departamento de Geografia da Universidade de São Paulo (USP), Wagner da Costa Ribeiro, o Brasil tem credenciais para liderar o processo de inclusão do custo da água nas trocas comerciais, por possuir mais de 15% da água doce do planeta e ser um dos maiores exportadores de alimentos. “Mas isso só teria consequência se houvesse deliberação coordenada via Organização Mundial do Comércio – que não é o melhor fórum – ou convenção internacional”, ressalva. “Uma decisão unilateral criaria desvantagem competitiva ao país”.
O professor de Direito Ambiental na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) José Rubens Morato ressalta a necessidade de rever o modo de apropriação desse bem natural: “É preciso conscientizar o agronegócio, em primeiro lugar, a não esbanjar água, e em segundo, sobre a necessidade de internalizar a escassez externa no processo produtivo”. Ele defende que o Pagamento por Serviços Ambientais seja detalhado com uma abordagem sistêmica: “O Código Florestal já o menciona de maneira genérica, mas isso não pode ser só um tributo, tem que contribuir para a regeneração da vegetação”.
“Não existe conflito entre os usos da água no Brasil”, afirma o assessor técnico da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), Nelson Ananias. “A agricultura usa água excedente aos usos prioritários, conforme o sistema de outorgas da Política Nacional de Recursos Hídricos”. A CNA vê com ressalvas a pegada hídrica, pois considera que o indicador não leva em conta o ciclo hidrológico do país nem as tecnologias aplicadas em campo. “Água é nosso diferencial competitivo, precisamos aproveitá-la melhor, preservá-la e recarregar nossos aquíferos”, diz.
Publicada no Valor Econômico em 20 de março de 2015.
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