“Como distribuir água é uma questão política”

Entrevista: Arjen Hoekstra, criador da pegada hídrica

Arjen Hoekstra, criador da Pegada Hídrica. Foto de Frans Nikkels

Arjen Hoekstra, criador da Pegada Hídrica. Foto de Frans Nikkels

Dauro Veras
Para o Valor Econômico, de Florianópolis

Em 2002, o pesquisador Arjen Hoekstra, da Universidade de Twente, Holanda, criou a pegada hídrica, uma metodologia que calcula a quantidade de água utilizada na cadeia de valor de produtos e também pelos consumidores. Esse conceito tem sido utilizado por diversas organizações – Hoekstra é colaborador da Unesco – para verificar os impactos do uso da água e planejar ações socioambientais. O consumidor brasileiro médio tem uma pegada hídrica 50% maior que a média global, principalmente por causa do grande consumo de carne.

Nesta entrevista que fiz por e-mail com o cientista holandês, ele explica por que o conhecimento sobre o comércio de água virtual tem importância estratégica. Também comenta os riscos e oportunidades para o Brasil, um dos países com mais abundância de água do planeta. “Nas próximas décadas, um número crescente de países tentará garantir terra e água em outros lugares, como a China está fazendo na África”, afirma Hoekstra. “Por um lado, a abundância de água é positiva para o Brasil, mas também significa que a pressão sobre os recursos internos deve continuar crescendo, à custa do meio ambiente e das populações locais”.

 O Sr. pode definir o conceito de pegada hídrica?

Arjen Hoekstra – Pegada hídrica é uma medida de apropriação de água doce subjacente a um determinado padrão de produto ou de consumo. Ele mede tanto o consumo quanto a poluição da água. Para cada produto, consideramos o uso de água em toda a cadeia logística. O consumo é medido pela observação do volume de água que se evapora ou é incorporado a um produto. O uso da água em si não é um problema, se ela for integralmente retornada limpa ao sistema. Os volumes de água retornados podem ser reutilizados dentro da área de captação, ao contrário do volume que se evapora ou é incorporado em um produto. É por isso que a pegada hídrica mede a água que é de fato perdida na captação.

Por que o conhecimento sobre o balanço do comércio de água virtual é um tema relevante para as nações?

Hoekstra – Quando a água é consumida para a produção de mercadorias de exportação, podemos dizer que o país “exporta” essa água. Falamos de “exportação de água virtual”, porque ela é praticamente incorporada nos produtos. Nós quantificamos os fluxos internacionais de água virtual entre os países pela multiplicação de cada volume de comércio de mercadoria específica pela pegada hídrica que essa mercadoria tem no local de produção. O fluxo de água virtual relativo às exportações de soja do Brasil para a Europa, por exemplo, é calculado multiplicando-se as toneladas de soja exportadas pela água consumida e poluída no Brasil por tonelada de soja.

O conhecimento sobre a balança comercial da água virtual de um país é uma informação estratégica, uma vez que a água doce é cada vez mais escassa no mundo inteiro. A água doce vai se tornar um dos mais importantes recursos geopolíticos. Os países que não têm água suficiente dependem de outros que têm excedentes. O número de países com déficit de água está aumentando rapidamente, enquanto o número de países com excedente de água para produtos de exportação diminui.

Que produtos agrícolas e manufaturados contribuem de forma mais significativa para a pegada hídrica global, a poluição da água e escassez de água?

Hoekstra – Os fluxos internacionais água virtual se relacionam sobretudo com culturas oleaginosas (como a soja), cereais, café, produtos de origem bovina, plantações de cana-de-açúcar, algodão e commodities industriais.

Na sua avaliação, a “luz de alerta” de cientistas sobre os desafios da escassez de água já foi notada pelos tomadores de decisão do mundo?

Hoekstra – Sim, com certeza. No seu recente relatório de risco global, publicado em janeiro, o Fórum Econômico Mundial lista a crise da água como o maior risco para a economia mundial em termos de impacto potencial.

O Sr. acredita que, além do uso de novas tecnologias, é viável mudar os padrões de consumo mundial de água pelo corte ou redução da carne na dieta e pela diminuição no rápido crescimento de biocombustíveis?

Hoekstra – O consumidor brasileiro médio tem uma pegada hídrica relativamente grande, 1,5 vez maior que a média global, principalmente por causa de seu grande consumo de carne. Em média, 55% da pegada hídrica do brasileiro se refere ao consumo de produtos de origem animal. Reduzir o consumo de carne não é fácil, porque significa que as pessoas têm de mudar sua dieta, mas as preocupações sobre o impacto dos produtos de origem animal estão aumentando em nível internacional, não só porque a carne e os laticínios são tão intensivos em água, mas também porque demandam muita terra e contribuem para a mudança climática. Uma dieta vegetariana irá reduzir todos os efeitos de forma significativa; comer menos carne é um começo.

A preocupação com os biocombustíveis está aumentando nas agendas políticas internacionais. Não podemos simplesmente substituir os combustíveis fósseis por biocombustíveis, porque seria trocar um problema – mudança climática e estoques limitados de combustível – por outro problema – escassez de terra e de água. A verdadeira solução para um fornecimento de energia sustentável reside na redução da demanda por energia e na mudança para energia solar, eólica e geotérmica.

O Sr. pode citar exemplos de países que já incluíram água virtual como um valor em suas políticas de comércio internacional? Esta é uma tendência para as próximas décadas?

Hoekstra – Alguns países do Oriente Médio, como Israel e Jordânia, têm externalizado a maior parte da sua pegada hídrica, por meio da importação de alimentos de outros lugares. A China e outros países estão comprando terras na África para garantir o seu abastecimento alimentar e ter também acesso à água lá. Nas próximas décadas, um número crescente de países tentará garantir terra e água em outros lugares. O Brasil é identificado como uma das poucas regiões que têm recursos naturais abundantes para exportação. Por um lado isso é positivo para o Brasil, mas também significa que a pressão sobre os recursos internos deve continuar crescendo, à custa do meio ambiente e das populações locais que podem enfrentar cada vez mais escassez de água.

O Brasil enfrenta uma grave crise hídrica em algumas de suas principais cidades. Que lições essa situação pode nos ensinar em termos de conservação da água, planejamento urbano e atividades de agronegócio?

Hoekstra – O Brasil é um “exportador de água virtual”. Isso significa que uma grande quantidade de recursos hídricos nacionais é consumida e poluída para fazer produtos de exportação, enquanto a importação de água virtual é muito pequena. O Brasil ocupa a quinta posição na lista de países com mais exportações líquidas de água virtual [diferença entre exportações e importações], depois da Índia, Argentina, Estados Unidos e Austrália. A primeira coisa a fazer é aumentar a eficiência do uso, ou seja, produzir os mesmos produtos com menos água. Isso pode ser feito por meio de melhores práticas e tecnologias de irrigação. A poluição da água pode ser reduzida através da agricultura orgânica.

As autoridades não conseguem colocar um limite na quantidade de água alocada para diferentes usuários. E os usuários não pagam pela escassez de água, o que não os incentiva a economizar. Em meu livro “A pegada hídrica da moderna sociedade de consumo” [Routledge, 2013], proponho que as autoridades definam a pegada hídrica sustentável máxima por captação e concordem com limite por bacia, além do qual o governo não emitiria licenças de consumo. A distribuição da água entre os diferentes usos competidores deveria se tornar uma questão política. A pergunta é: aonde a água deveria ir se ela é limitada?

O que seria uma abordagem sustentável para enfrentar os desafios da conservação da água em um país como o Brasil, que tem no comércio de commodities uma importante âncora para a sua economia?

Hoekstra – Como distribuir água é uma questão política. O maior problema é o excesso de alocação, que leva à exploração excessiva e a rios secos. Tanto a natureza quanto as pessoas sofrem quando não há definição clara de prioridades. A meu ver, as autoridades devem entender que em períodos nos quais a água é mais demandada, a disponibilidade é limitada. O uso sábio da água requer uma alocação inteligente dos suprimentos limitados. Isso significa que não deve ser alocada mais água para usuários competidores que a realmente disponível de forma sustentável. Além disso, usuários específicos não devem receber mais do que razoavelmente necessário, com base nas melhores tecnologias e práticas disponíveis. As autoridades devem desenvolver benchmarks que indiquem qual é a pegada hídrica máxima para cada tipo de uso. Demandas superiores a estas não devem ser fornecidas.

Uma versão condensada desta entrevista foi publicada no Valor Econômico em 20 de março de 2015.

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