03

Jan

25

DVeras Awards de Literatura 2023/2024

Screenshot 2025-01-03 184205

 

 

 

 

 

 

 

 

 
Depois de um interlúdio, o DVeras Awards de Literatura está de volta, agora em calendário bienal. A edição 2023/2024 marca uma década desta celebração hedonista e não utilitária da leitura, promovida pelo blog DVeras em Rede.

O certame se inspira na lista dos dez direitos inalienáveis do leitor, de Daniel Pennac (Comme un Roman, 1992). Dois deles, em especial, justificam a pausa na premiação em 2023: o direito de não ler e o direito de calar-se. Exerci ambos sem culpa e agora volto a compartilhar minhas garimpagens.

As histórias deste ciclo vão de saga familiar a crime antigo, de amor bandido a busca existencial, de realismo mágico a poesia em prosa. Elas têm sangue, sexo, sonhos. Têm gato sumido, banho de sol com vizinha, pileque de vinho. Espionagem, equívocos, saudades.

Personagens inquietas nos conduzem pelas ruas de Tóquio, Roma e Cidade do México, por subúrbios barra-pesada de Brisbane, pampas gaúchos, estepes chinesas, apartamentos paulistanos… Histórias muito diversas, mas com uma coisa em comum: passam longe do tédio.

As regras

A coisa funciona mais ou menos assim: estão excluídas as leituras incompletas até 31 de dezembro, assim como as obras técnicas, de referência e lidas por motivos profissionais, exceto quando o prazer superar a utilidade. Controvérsias e casos omissos são decididos de forma irrecorrível pela comissão julgadora – eu mesmo -, que assume os riscos das eventuais tolices e imprecisões.

Os números

Em 2023 e 2024, li por prazer 20 livros de 17 autores de 7 países: Brasil, Austrália, Cuba, Estados Unidos, Japão, México e Reino Unido (a trilogia de Verissimo é contabilizada como um único livro). Só 4 foram escritos por mulheres (é pouco). Há 15 autores vivos, que eu saiba, e conheço 4 pessoalmente. Por gênero, são 13 romances, 5 coletâneas de contos e uma de crônicas. Por idioma, são 15 obras em português – traduções inclusas -, 3 em espanhol e uma em inglês.

A lista

Li duas coletâneas de contos de Lucia Berlin, ganhadora do DVeras Awards de 2019 com o Manual da Faxineira: Noite no paraíso e Bienvenida a casa, ambos de fundo autobiográfico. No segundo livro, ela recorda a vida a partir das casas em que morou. Ficou inacabado com a morte da autora e inclui várias cartas. Sou fã da escrita de Lucia, que transforma o leitor em amigo íntimo com graça e leveza.

Um garimpeiro, um padre, um médium, um detonador, um guia turístico e eu, de Paula Gomes, me fisgou pelo título (meu pai aprovaria; sempre que alguém começava uma enumeração de pessoas com “eu”, ele citava o ditado espanhol: “Y el burrito adelante”). Sua narrativa é inventiva e bem-humorada, cheia de personagens excêntricos e com pinceladas de absurdo. E por falar em absurdo…

A hora dos ruminantes, José J. Veiga, foi uma bela descoberta. Esse romance alegórico publicado em 1966 conta sobre a chegada de forças misteriosas na pacata vila de Manarairema. As presenças perturbadoras incluem homens mudos e autoritários, um exército de cães e uma invasão de bois.

Adiós, Hemingway é um romance policial ambientado em Cuba, que coloca no centro da história o escritor americano em uma trama de assassinato investigada anos depois, quando o ex-detetive Mário Conde é encarregado de descobrir a identidade de um esqueleto encontrado na propriedade de Hemingway. O autor, Leonardo Padura (O homem que amava os cachorros), é dos bons.

Quatro mulheres, de Ricardo Medeiros, é uma reportagem romanceada sobre quatro mulheres que cruzaram a vida do meu amigo jornalista e escritor catarinense. Dare, aeromoça que viajou o mundo pela Varig; Paula, que trabalha cuidando de corpos após a morte; Biba, trabalhadora de serviços gerais, e sua mãe Margaridinha, dona de casa. Bem bom.

O tempo e o vento, de Erico Verissimo, narra a formação do Rio Grande do Sul por meio de gerações das famílias Terra e Cambará. Amor, poder, guerra e identidade se entrelaçam numa saga que atravessa séculos. A obra está dividida em três livros: O Continente, O Retrato e O Arquipélago. Amei. Não vi a série da Globo, mas imaginei o Capitão Rodrigo com a cara do Tarcísio Meira.

Asfalto selvagem: Engraçadinha, seus amores e seus pecados, clássico de Nelson Rodrigues, aborda os dilemas morais e passionais de uma mulher que vive no subúrbio do Rio de Janeiro. É uma crônica de costumes muito bem contada. Também não vi a série da Globo, mas visualizei a protagonista encorpada em Alessandra Negrini e Cláudia Raia.

Softwares livres para jornalistas e profissionais de comunicação, do amigo Gastão Cassel. Li motivado pelo prazer de encontrar um texto de qualidade rara em obras de referência. Traz ótimas dicas de recursos gratuitos para quem deseja evitar as assinaturas de programas de computador. Acho que vai precisar de uma versão atualizada em breve, pois o cenário muda rápido.

Crônica do pássaro de corda, Haruki Murakami. Toru Okada é um homem comum que busca respostas para o desaparecimento da esposa e do gato. Nessa jornada, ele é levado a um mundo fantástico que combina memórias dele e de outros personagens incríveis, sonhos e eventos estranhos. Tem uma subtrama sobre a presença de tropas japonesas na China durante a 2a. Guerra.

O incolor Tsukuru Tazaki e seus anos de peregrinação, do mesmo autor, traz outra busca existencial. Tsukuru Tazaki se considera um homem sem graça, depois de ter sido excluído do convívio com seus melhores amigos de juventude, por motivo que desconhece. Um dia ele resolve enfrentar essa dúvida e parte em busca de explicações, que incluem até mesmo uma viagem à Finlândia. Bonito.

Abandonar um gato, também de Murakami, é um ensaio autobiográfico sobre a relação complicada dele com o pai, em tom honesto e intimista. O autor aborda o impacto da 2a. Guerra sobre a juventude do pai, a partir de uma pesquisa detalhada de alguns eventos marcantes.

The Things They Carried, Tim O’Brien, é uma coleção de contos interligados que aborda as experiências de um grupo de soldados americanos na guerra do Vietnã. O título se refere aos objetos que os personagens carregavam. Muito bem escrito. Tem uma pegada parecida com aquele filme reflexivo sobre a batalha da Guadalcanal (WW2), Além da linha vermelha, de Terrence Malick.

Bambino a Roma, lançado em julho de 2024, é o romance mais recente de Chico Buarque. Traz memórias romanceadas da sua infância em Roma, onde morou entre 1953 e 1954. Interações com a família, colegas de escola e amigos do bairro, passeios de bicicleta, paixões platônicas, tudo contado com a maestria de quem tem domínio perfeito do idioma e da arte de contar histórias.

Contos escolhidos reúne histórias curtas de Aldous Huxley, abordando a condição humana, impactos da modernidade e dilemas morais. Gostei muito de O pequeno Arquimedes, sobre um menino italiano que se revela um gênio da música. Outra ótima é sobre uma mulher inglesa em sua villa italiana, entediada com a monotonia do casamento, que vive um romance extraconjugal. Ótimo “plot twist”.

Famílias terrivelmente felizes, de Marçal Aquino, traz 13 contos com personagens que enfrentam situações-limite do cotidiano, como traições, violências e desejos reprimidos. Com estilo afiado e econômico, Aquino é mestre na narrativa curta. Gostei, mas achei meio desigual. Há contos excelentes e outros nem tanto, mas vale a leitura.

Garoto devora universo, do jornalista australiano Dalton Trent, foi outra boa descoberta. A história se passa no subúrbio de Brisbane e é contada por um garoto de 12 anos que vive situações complicadas com leveza e humor: mãe dependente de heroína, padrasto traficante, irmão mais velho que não fala e é clarividente, pai omisso, babá ex-presidiário. Virou série na Netflix, bem adaptada.

O verão sem homens, de Siri Rustvedt, conta sobre Mia Fredrickson, poeta de 55 anos que sofre um colapso nervoso depois da separação. Para se recuperar, ela se refugia na cidade natal em Minnesota, onde convive com a mãe e um grupo de amigas idosas, além de algumas adolescentes a quem dá aulas de poesia. Bonito. Siri é viúva do escritor Paul Auster, que morreu em 2024.

Salvar el fuego, de Guillermo Arriaga, ganhou o Prêmio Alfaguara de romance em 2020. Aborda um amor intenso e proibido entre uma mulher casada de classe alta, coreógrafa que vive na Cidade do México, e um presidiário condenado à prisão perpétua por assassinatos. Forte e tensa alegoria das contradições da sociedade mexicana. Em 2012, fiz um curso de roteiro com o autor em Curitiba.

Chá de Bolda, de Valério Bolda. Tive a honra de participar desse projeto como revisor e palpiteiro. O autor é um autêntico manezinho de Floripa que, por insistência dos amigos, transformou em livro as crônicas hilárias que publicava no Facebook. A obra seria ilustrada pelo querido Frank Maia, que nos apresentou, mas morreu cedo, então as ilustrações foram feitas pelo competente Galvão Bertazzi.

O resultado

Apontar o melhor livro lido no biênio foi tarefa dificílima, pois tem muita coisa excelente. Para reduzir o volume de impropérios contra sua escolha, a comissão julgadora concedeu algumas menções especiais e lembra a todos de que, no fim das contas, esta é só mais uma lista.

Hors concours: O tempo e o vento. Esse monumento em prosa não deixa nada a dever aos maiores cânones literários. Seria covardia deixá-lo competir.

Melhor romance de estreia: Garoto devora universo. Dalton Trent mandou bem nessa história autobiográfica. Os personagens são adoráveis, embora algumas situações, não muiro verossímeis.

Melhor livro de crônicas: Chá de Bolda. Valério tem habilidade inata pra captar o absurdo e a graça das situações do cotidiano. Torço pra que continue escrevendo.

Melhor livro de contos: Noite no paraíso. Lucia dominava o ofício e sabia se colocar inteira no que escrevia. Viveu com intensidade e compartilhou isso com os leitores.

Medalha de bronze: Crônica do pássaro de corda. Quem acompanha o DVeras Awards sabe da minha admiração por Murakami. Este não é o meu favorito dele (acho que é Norwegian Wood), mas é uma amostra incontestável do talento para construir mundos imaginários que bordejam o real. Confesso que tenho dificuldade de comentar e “rotular” a obra de Murakami, às vezes descrita de forma imperfeita como “realismo mágico japonês”. Ela me afeta além da palavras.

Medalha de prata – Bambino a Roma. “Chega a ser irritante a capacidade que Chico tem de fazer coisas boas”, disse Cadão Volpato em sua resenha dos melhores livros do ano para o Valor Econômico. Bambino a Roma é um delicioso retorno a um período da infância de nosso muso da MPB, quando ele ainda usava calças curtas e passou uma temporada na Itália. Chico combina suas lembranças com recursos ficcionais e assume isso pro leitor. Adorei. Se ele fosse americano, já teria ganhado o Nobel de Literatura pelo conjunto da obra.

E a medalha de ouro do DVeras Awards vai para…

Salvar el fuego. Sabe aquele tipo de livro que você não consegue largar até chegar no fim? Guillermo Arriaga nos faz mergulhar com a cabeça, o coração e as tripas na história de amor entre a coreógrafa Marina e o presidiário José Cuauhtémoc, uma avalanche que não pode ser detida. O romance bebe da experiência dele como roteirista (Amores Brutos, 21 Gramas, Babel) e diretor de cinema (The Burning Plain), mais vai além: é muito bem escrito. Três personagens se alternam na narrativa, que soa autêntica e vigorosa. O resultado é um romance forte, passional, que vai ganhando força à medida que avançamos na leitura. Tem tudo pra virar um belo filme.

Bookmark and Share


Não há comentários.


Comentar: