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DVeras Awards de Literatura 2020

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Eis uma nova edição do DVeras Awards de Literatura, há 14 anos celebrando o direito humano universal ao prazer da leitura ociosa. Li pouco neste Ano das Pestes de 2020. Acompanhar os capítulos da novela grotesca chamada Brasil me provocou certa dificuldade de concentração. Mas até mesmo num ano de merda, houve espaço pra descobertas alentadoras. Livros são grandes companheiros na tormenta, portais no espaço-tempo e vacinas antiestupidez com alta eficácia. Pelo menos, não conheço nenhum leitor voraz que seja terraplanista e faça ozonioterapia retal.

Repasso as regras deste concurso hedonista. O DVeras Awards de Literatura, promovido pelo blog DVeras em Rede (que em julho completou 20 anos), elege anualmente os melhores livros que li por prazer. Ficam excluídas as obras de propósito utilitário, as inacabadas até 31 de dezembro e as hors concours. Amigas e amigos leitores são incentivados a também compartilharem suas listas. Este ano o prêmio tem duas categorias: “ficção” e “não-ficção”, com aspas, cada uma com três nominados e um vencedor. O melhor de todos ganha o Grand Prix DVeras.

Em 2020, li 18 obras que atenderam os critérios do certame – um livro a cada três semanas, bem aquém da média usual. Os temas variaram da guerra à antropologia, da psicologia à criminalidade, da filosofia à sátira da autoajuda, da imigração à violência digital, em gêneros como realismo fantástico, jornalismo literário e divulgação científica. Os autores são de dez países: Alemanha, Angola, Argentina, Brasil, Estados Unidos, Inglaterra, Islândia, Israel, Japão e Líbano. Há somente seis mulheres na lista. Esta retrospectiva me ajuda a definir alguns desafios factíveis para 2021:

  • ler um livro por semana

  • ler mais mulheres

  • ler mais autores da América Latina e África

  • ler mais em espanhol e inglês

  • explorar mais temas e formatos

 Vamos ao que interessa:

Hors concours

Siddartha, publicado em 1922 por Herman Hesse, que ganhou o Nobel de literatura em 1946. Obra bela e poética sobre a busca de autoconhecimento de um indiano contemporâneo de Buda. Demorei anos pra encarar a leitura, o que foi bom, pois o tempo me deixou mais receptivo. Recomendo. Lido em inglês.

“Não-ficção”

  • The Last Battle. Cornelius Ryan, 1966. Relato sobre o avanço das tropas aliadas sobre a Alemanha nos últimos dias da 2a.Guerra Mundial, baseado em documentos históricos. Ajuda a entender como se deu a repartição do país entre americanos e soviéticos, que definiu a geopolítica europeia pós-guerra. Lido em inglês.

  • Rápido e devagar: duas formas de pensar, Daniel Kahneman. O psicólogo israelense, ganhador do Nobel de Economia em 2002 por suas teorias sobre economia comportamental, questiona de maneira bem fundamentada a ideia de que a nossa tomada de decisões é exclusivamente racional. Lido em inglês.

  • Você não merece ser feliz: como conseguir mesmo assim, Craque Daniel. Os humoristas Daniel Furlan e Pedro Leite, do Falha de Cobertura, criaram uma paródia de manual de autoajuda que ironiza a mania das pessoas de perseguir a felicidade. “Se você quiser, se você se esforçar, se você treinar, se você entrar de cabeça, se você se concentrar, nada garante que você vai conseguir”, resumem. Ri muito.

  • A guerra: a ascensão do PCC e o mundo do crime, Bruno Paes Manso e Camila Caldeira Nunes Dias. Livro-reportagem sobre os bastidores do Primeiro Comando da Capital, suas disputas com outras facções criminosas, a expansão pra outros países e a falência da segurança pública no Brasil. Bem apurado, mas às vezes repetitivo.

  • Uma história da guerra, John Keegan. O historiador britânico dá uma aula sobre a natureza humana ao examinar as origens dos conflitos bélicos, suas motivações, rituais e evoluções tecnológicas, dos guerreiros de Átila aos ianomâmi, dos bôeres na África do Sul aos soldados das guerras globais do século 20.

  • Diário de Berlim Ocupada: 1945-1948, Ruth Andreas-Friedrich. Relato em primeira pessoa sobre a barbárie do pós-guerra por uma jornalista alemã. Ela se vê sitiada em situação precária num apartamento com amigos, passando fome e frio enquanto tropas russas e aliadas ocupam a cidade e a guerra fria começa a se instalar.

  • A lógica do cisne negro, Nassim Nicholas Taleb. Publicado em 2007 pelo matemático e consultor financeiro de origem libanesa, o livro mostra como estamos constantemente à mercê de acontecimentos imprevisíveis que são a base de quase tudo o que acontece no mundo. Muito atual.

  • A máquina do ódio: notas de uma repórter sobre fake news e violência digital, Patrícia Campos Mello. A jornalista conta como as redes sociais são manipuladas por líderes populistas, afetando processos eleitorais e minando a democracia. A obra é uma ampliação de reportagens publicadas na Folha de S. Paulo. Leia.

  • O mundo até ontem: o que podemos aprender com as sociedades tradicionais?, Jared Diamond. O biólogo evolucionário, fisiologista e biogeógrafo nos conduz ao cotidiano de sociedades tradicionais – povos das ilhas do Pacífico e do deserto Kalahari, inuítes, índios da Amazônia, entre outros, mostrando que temos muito a aprender com eles, sem idealizar seu estilo de vida.

“Ficção”

  • Manual prático de levitação, José Eduardo Agualusa. O volume reúne 20 contos organizados em três partes: Angola, Brasil e Outros lugares de errância. Gostei demais. Tenho especial predileção pelo gênero e, neste meu primeiro contato com o autor angolano, percebi grande talento e domínio técnico. Quero mais.

  • Murilo Rubião, obra completa. Coleção dos 33 contos do brilhante autor mineiro que antecipou o gênero literário do realismo fantástico, popularizado depois por García Márquez e Julio Cortázar. Rubião passou anos reescrevendo sua obra.

  • Killing Commendatore (O assassinato do comendador, em português), Haruki Murakami. Pintor recém-separado sai numa road-trip pelo norte do Japão e depois vai morar numa casa na montanha. Lá encontra um quadro misterioso no sótão e conhece um vizinho rico solitário que guarda um segredo. Lido em inglês.

  • O álibi perfeito e outras histórias, Patricia Highsmith. Contos de uma das autoras mais reconhecidas do gênero crime e mistério. Não estão à altura dos excelentes O talentoso Ripley e O amigo americano, matérias-primas de duas boas adaptações no cinema.

  • Love, Stephen King. A viúva de um escritor famoso começa a receber ameaças de um maluco, fã do autor e obcecado pelo acervo inédito supostamente guardado por ela. King nos conduz ao passado do casal e a um segredo terrível da infância do escritor, que abre o portal para uma realidade fantástica.

  • O segredo do lago, Arnaldur Indridason. O esqueleto de um homem é encontrado no fundo de um lago islandês que começou a perder água por causa de uma fissura geológica. Junto dele está um equipamento de rádio de origem soviética. A narrativa acompanha a investigação policial do caso, que desvenda memórias da guerra fria.

  • Plata quemada, Ricardo Piglia. Ficção entre grandes aspas. O autor baseia a narrativa numa história verídica sobre assaltantes argentinos que, depois de um sangrento roubo a banco em 1965, escapam para Montevidéu. Lá são cercados em um apartamento pela polícia uruguaia e decidem resistir a bala. Lido em espanhol.

  • Intérprete de males, Jhumpa Lahiri. A autora inglesa naturalizada americana ganhou o Pulitzer de literatura em 2000 com este volume de contos, seu primeiro livro. São histórias de indianos ou descendentes tentando se adaptar à vida nos Estados Unidos ou em seu cotidiano na Índia. Bem bom.

Resultados

Na categoria “não-ficção”, foram nominados Rápido e devagar, A máquina do ódio e O mundo até ontem. O livro de Patrícia Campos Mello é fundamental pra entender o momento político que vivemos hoje no Brasil e o contexto em que isso ocorre. O de Jared Diamond é uma rica oportunidade para os interessados em antropologia conhecerem as pesquisas do autor com sociedades caçadoras-coletoras e refletir sobre o estilo de vida urbano ocidental.

E o escolhido é…

Rápido e devagar: duas formas de pensar. O psicólogo comportamental Daniel Kahneman apresenta as pesquisas sobre o funcionamento da mente que o fizeram virar referência em economia. A partir de diversos experimentos, ele mostra como tendemos a nos comportar em temas como aversão à perda, excesso de confiança em escolhas estratégicas, dificuldade de prever o que vai nos fazer felizes no futuro e identificação de riscos. Aula magna sobre a natureza humana, serve também de alerta para não apostarmos demais na intuição. Sim, a intuição falha, e mais vezes do que gostaríamos de crer. Livraço.

Na categoria “ficção”, os nominados são Murilo Rubião: obra completa, Killing Commendatore e Plata quemada. O volume de histórias fantásticas de Rubião ganhou menção honrosa, mas poderia estar tranquilamente ao lado de Siddharta como hors-concours. Dos contos, destaco o belo Bárbara, sobre a mulher que pedia coisas extravagantes ao marido, e Teleco, o coelhinho, sobre um coelho falante que muda de forma. O romance de Piglia representa a literatura argentina com louvor, bebendo do jornalismo para trazer ao leitor uma narrativa ágil e de grande interesse humano.

E o escolhido é…

Killing Commendatore, de Haruki Murakami, que também leva o Grand Prix DVeras de melhor livro lido em 2020. O autor de Kafka à beira-mar e da trilogia 1Q84 nos presenteia com sua concepção peculiar de realismo fantástico, desta vez mergulhando na pintura como forma de expressão. O assassinato do comendador se aproxima da obra de Murilo Rubião quanto à falta de espanto das personagens diante de situações extraordinárias. Seu protagonista, um pintor de retratos com 36 anos, vive uma experiência invulgar na casa isolada que alugou numa montanha: em certas madrugadas, escuta o som de um pequeno sino vindo da floresta próxima. A maneira como ele lida com esse mistério, ajudado por um vizinho milionário e solitário (ecos de O Grande Gatsby, de Fitzgerald) e por uma adolescente, conduz a história a uma fascinante investigação da natureza humana e da arte. As palavras de Murakami deslizam espontâneas como água de riacho, numa narrativa repleta de camadas de reflexão sobre o sentido da vida e da arte.

Boa leitura!

 

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