“Preconceito é preguiça de pensar”: entrevista com Lígia Fascioni
Uma conversa com a engenheira e consultora Lígia Fascioni sobre os desafios da inovação, design thinking e a importância da musculação cerebral.
Entrevista a Dauro Veras
Julho de 2015
Peço licença para abrir este texto com uma digressão e autorreferência pouco usual. Esses dias fiz uma estimativa conservadora do número de pessoas que já entrevistei em meus 29 anos como repórter: em torno de 9 mil, nas mais diversas áreas de conhecimento. Muitas dessas conversas jamais vieram a público. Guardo em mente o conselho de um antigo professor, Miguel de Urabayén. Ele costumava dizer que o bom jornalista só publica 10% do que sabe. Outro aforismo do mestre espanhol ajuda a reforçar a autoestima deste especialista em generalidades: “O bom jornalista não é aquele que sabe; é o que sabe quem sabe.”
Numa simplificação extrema, as pessoas que entrevistei poderiam ser classificadas em três categorias do ponto de vista do interesse jornalístico, na ordem decrescente de quantidade: as irrelevantes, as interessantes e as indispensáveis. Faz parte desta última categoria um pequeno número de indivíduos inquietos, criativos, movidos por grandes desafios intelectuais e que são generosos ao compartilhar conhecimento. Assim é Lígia Fascioni: alguém que deixa sua marca por onde passa e nos ajuda a ir além dos lugares comuns.
Engenheira eletricista de formação, Lígia tem transitado sem susto entre a robótica e o design, a aviônica e o estudo de idiomas, o marketing corporativo e a arte de viajar de motocicleta. Também fotografa e escreve bem – é autora de sete livros e mantém um blog sobre seus temas de interesse (veja os links). Desde 2011 ela mora com o marido em Berlim, de onde, em julho, me respondeu por e-mail algumas perguntas sobre inovação. Acho que esta entrevista deixaria satisfeito o professor Urabayén, pois faz parte das 10% das minhas conversas que merecem ser publicadas e a fonte domina o assunto. Mas a avaliação cabe a você.
Dauro Veras – Qual é a sua definição preferida de inovação?
Lígia Fascioni - Gosto muito dessa: “Inovação é o agrupamento, combinação ou síntese do conhecimento em um produto, processo ou serviço original, relevante e valioso” [Managing Creativity and Innovation: Harvard Business Essencials, Boston 2003]
A chave dessa definição está na palavra “valioso”. É que para uma coisa ser valiosa implica que alguém paga para tê-la (ou usá-la), ou seja, ela é importante para uma parte do mercado. Não é apenas uma ideia, uma invenção, uma loucura ou uma moda. É um negócio que entrega valor para uma parte do mercado.
Aliás, essa é a principal diferença entre uma invenção e uma inovação: a invenção é uma ideia que soluciona um problema, mas não necessariamente é um negócio. Insisto nesse modelo porque se não for um negócio (que exige produção e distribuição, no mínimo), não será acessível a quem pode lhe atribuir valor.
Se um sujeito inventa uma máquina do tempo e a guarda na sua oficina, por mais revolucionária que seja, não será uma inovação até que as pessoas possam ter acesso a ela. Para isso, há que se transformar esse protótipo bem sucedido num serviço ou produto. Por isso nunca entendo quando colocam o Santos Dumont como símbolo de projetos de inovação no Brasil. Ele foi um grande inventor, mas inovadores de verdade foram os Irmãos Wright.
A própria publicação citada anteriormente detalha ainda mais a inovação radical. Para ser considerada dessa maneira, ela deve cumprir um ou mais dos seguintes critérios:
• Um conjunto inteiramente novo de funcionalidades
• Melhoria de desempenho cinco vezes ou mais em relação ao produto/serviço existente
• 30% ou mais em redução de custo
• Mudança na base de competidores
A principal, na minha opinião, é justamente a base na mudança de competidores. Basta lembrar da Apple, a empresa que mais revolucionou o mercado nos últimos tempos; cada vez que ela lança um produto radicalmente novo, todo o mercado se movimenta para acompanhar, tanto do ponto de vista do design como de funcionalidades. Há poucos smartphones vendidos hoje no mercado que não se pareçam, nos seus princípios formais e funcionais mais fundamentais, com um iPhone.
Você acredita que o conceito de inovação precisa ser melhor compreendido pelas empresas brasileiras? Quais aspectos são subestimados e quais são superestimados?
Penso que não só pelas empresas brasileiras, mas no mundo inteiro. O entendimento do conceito de inovação é algo relativamente novo (apesar de a inovação existir desde que o mundo é mundo) e a tentativa de “domesticar” esse processo é o que causa as maiores frustrações. Na verdade, ainda não se compreende como uma ideia se transforma numa inovação; não há uma receita de bolo que garanta que, se aplicada, a empresa vai ter sucesso. Inovação é intrinsecamente risco. E o Brasil é um péssimo lugar para se correr riscos (aqui o resumo de uma matéria antiga bem interessante que continua valendo ao explicar por que temos um ambiente tão pouco propício a essa prática).
Apesar disso, algumas empresas brasileiras têm conseguido resultados muito interessantes, mas com certeza, as que têm obtido sucesso entendem que podem errar e quebrar a qualquer momento. A própria Apple já quase faliu algumas vezes por fazer apostas erradas.
O que as empresas precisam entender que não há como prever se uma ideia vai se tornar uma inovação ou não; a chave é aumentar o número de ideias para aumentar essa probabilidade. É o mesmo princípio da seleção natural de Darwin (variação cega). Aqui há um excelente artigo explicando o que uma coisa tem a ver com a outra.
Essa é a parte que mais dói para os empreendedores entenderem: boa parte tem poucos recursos para investir e não quer ou não pode se arriscar muito. Por isso, essa parcela majoritária opta sempre por desenvolvimentos mais seguros, testados, com mais chances de sucesso, ou seja, a inovação incremental (que, em si, não é ruim de maneira alguma). Mas isso, claro, afasta-a cada vez mais da inovação radical.
Como o design pode se transformar em um negócio? Você pode comentar sobre design thinking?
Penso que essa pergunta já foi respondida nesse link que mandei para você antes. Talvez o post “O que é design thinking?” também possa ajudar, assim como a descrição de duas experiências de participar de workshops de design thinking. Uma no Brasil, “Na prática, a teoria é mais divertida”, e outra em Berlim, “Jam Service Design Berlin 2014”.
Quais são as principais competências e habilidades que um empreendedor ou executivo deve buscar quando investe em cursos de formação?
Para mim, o mais importante de tudo é a pessoa entender que é preconceituosa (nosso cérebro é construído assim) e lutar contra isso de todas as maneiras que conseguir. Não há cursos, workshops ou práticas que consigam desenvolver a capacidade de inovação de uma pessoa que não está acostumada a pensar. Sobre isso, tenho três posts que falam a esse respeito: O profissional inovador, Entenda por que preconceito = preguiça de pensar e O olhar do hipopótamo (as respostas são cheias de links, acho que depois dessa você nunca mais me entrevista…rsrsrsrs).
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Perfil
Lígia Cristina Fascioni é engenheira eletricista, mestre em Engenharia Elétrica na área de Automação e Controle Industrial, especialista em Marketing e doutora em Engenharia de Produção e Sistemas com foco em Gestão Integrada do Design.
Atuou por 10 anos como engenheira de aplicações e desenvolvimento em empresas de base tecnológica, principalmente nas áreas de robótica, automação e aviônica, passando depois a trabalhar com marketing corporativo.
Publicou sete livros e atua como palestrante e consultora, além de ministrar cursos corporativos. Suas principais áreas de trabalho são gestão (marketing, identidade corporativa, planejamento estratégico, gestão de riscos), inovação (design, design thinking, ferramentas e melhores práticas) e liderança. Atitude profissional é um tema transversal, inserido implícita e explicitamente em todas as suas atividades.
Desde 2011 reside em Berlin, Alemanha, onde é sócia de uma empresa de tecnologia e estuda inovação. Além de colaborar como colunista em vários portais e oferecer workshops em português na Alemanha, viaja duas vezes por ano ao Brasil para palestrar e ministrar cursos.
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Uma versão resumida desta entrevista foi publicada em reportagem para o jornal Valor Econômico em 17 de julho de 2015.
Foto: acervo de Lígia Fascioni.