O poço
Camillo Veras
Depois de toda uma tarde modorrenta, mais que morna, o velório acabou e finalmente o caixão partiu. Nesses tempos já não era obrigação nem costume usar preto em cerimônias como essa e muitos chegaram ao local de mangas curtas. Somente as mulheres mais velhas mantinham os vestidos longos e negros. Lento, o cortejo levou quase um quarto de hora para percorrer aquelas centenas de metros entre a casa e o cemitério, encoberto pela poeira levantada pelos passos arrastados e ainda castigado pelo sol de vários meses de seca.
Enterros de parentes, especialmente os distantes, com os quais não se tinha qualquer convivência, sempre foram um atrativo para quem vivia longe. Uma boa ocasião para rever os primos e tios, saber das novidades, ouvir e contar piadas e grandes histórias, em meio às saudações e abraços calorosos de parentes e amigos da família de quem você nunca ouviu falar.
Nunca gostei de entrar em cemitérios. Preferi acompanhar o cortejo só até o portão, onde se acumulam os mais discretos e menos emotivos, que não queriam acompanhar o finado até a boca da cova. Trocando cumprimentos e batendo papo com gente desconhecida, primos que eu nunca vira, o tempo foi passando, enquanto se faziam as últimas rezas à beira do túmulo. De repente um senhor bem velho se aproximou com a pergunta tradicional:
- Você é filho de quem?
- Do Seu Janes, respondi.
- Ah. Que bacana ainda somos primos, disse o velho, que encompridou a conversa. O Janes, irmão do Jacó, não é?
Sem sequer me dar tempo para responder, continuou… – Vou contar uma história do seu pai, que se passou aqui perto… e começou:
Ainda de longe o rapaz a cavalo notou a multidão aglomerada no terreiro, ao lado da casa do compadre Manuel do Quindô, tio do Jonas. Àquela hora, no meio da tarde e ainda com o sol alto, não podia ser festa. Um velório, talvez. Em vez de pensar mais e aguçar a curiosidade, o jovem apressou a montaria. Concentradas, as pessoas nem perceberam sua chegada. Em minutos ele estava junto ao grupo e matava a vontade de entender.
Dois trabalhadores que cavavam uma cacimba tinham ficado soterrados depois de um desabamento. Os homens discutiam enquanto arranjavam cordas e esperavam um voluntário para descer no poço e buscar os corpos. Mulheres consolavam esposas e parentes das vítimas. Crianças circulavam, tentando não perder nada do “movimento”.
- Você conhece essa história, né?, perguntou o velho, meu mais novo primo.
Eu a conhecia de cor, desde menino, contada e recontada por papai, e até repetia para os amigos. Mas como grande apreciador de contos e contadores de causos, preferi deixar ele continuar. Balancei a cabeça.
E ele continuou. Antes mesmo de eu dizer que não lembrava…
Rapaz novo e forte, o visitante logo passou à frente e se ofereceu.
- Eu desço.
Ninguém entendeu bem e ele repetiu.
-Eu desço no poço.
Depois de instantes de tensão, resolveram. Amarradas as cordas na cintura e foram descendo o rapaz lentamente, com a ajuda de uma roldana à beira do poço. A cacimba, já bem funda, ficava cada vez mais estreita e escura. No fundo, úmido, estavam os dois corpos soterrados. Depois de mover as pedras maiores e cavar com as próprias mãos, o jovem tirou a corda, fez um laço em torno dos braços do morto e gritou que podiam começar a puxar. Um momento de silêncio e o cadáver começou a aparecer, saindo aos poucos do entulho. De repente, um estrondo e um novo desabamento.
- Janes! Janes!, gritavam os homens à beira da cacimba.
Novo silêncio, muita poeira. Só depois de alguns minutos o rapaz respondeu.
- Estou aqui. Tou bem. A corda ficou presa no morto. Mandem uma faca. Rápido, que eu estou enterrado até as pernas.
Mas como descer uma faca? Na casa e na comunidade, bem pobre, não havia outras cordas. Jogar a lâmina poderia matar o rapaz. Passaram-se mais alguns minutos e o sol já começava a se pôr quando alguém teve a idéia.
- Os cintos! Vamos juntar os cintos e fazer uma corda pra descer a faca, gritou o seu Adauto da carne.
Ainda bem que naquele tempo ainda não tinham inventado as calças com elástico. Em pouco tempo, todos os homens tiraram os cintos e improvisaram uma corrente. A faca foi descida com cuidado, para não bater na cabeça do rapaz. Já era noite quando ele pegou na lâmina e segurou forte no cabo de madeira, antes de soltar o cinto. Se a faca caísse ia se difícil encontrar naquela escuridão.
Agachado, apalpou até tocar nos cabelos do defunto. Cortou a corda, cavou um pouco para tentar livras as próprias pernas, fez um laço na cintura e gritou.
- Puxem. Devagar pra não quebrar a corda…
Nos primeiros metros ele sentiu a cabeça de um dos mortos e o sangue escorrendo, enquanto o cascalho lhe cortava a pele das pernas. Controlou o medo e chegou lá em cima como herói, mesmo sem ter conseguido tirar os corpos.
Mais de meio século se passou. Depois de ter demonstrado coragem em vários outros momentos, ele ainda mostrava a marca na perna e assustava filhos e netos, descrevendo a sensação de ter pisado na cabeça de um morto. Às vezes ele até contava que seguravam o pé dele na hora em que ia saindo da cacimba.
Fortaleza, novembro de 2010
Comentário do autor – Cresci escutando essa história, e mais de seis décadas depois do fato, ouvi um homem contá-la na porta de um cemitério, na localidade de Santo Antônio, em Russas, Ceará, Brasil.
Comentário do blogueiro, irmão do autor – Também cresci ouvindo essa história, mas ninguém melhor que você pra contá-la.