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Jan

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A rainha do Sabiá

Hoje de manhã, em Fortaleza, morreu a tia Edite, mana querida de meu pai, com quase 90 anos de idade. Ela era a última sobrevivente dos irmãos dele, depois da partida da tia Maria do Céu aos 91 no ano passado. Visitei tia Edite em abril (poucos dias depois da morte dele), no quarto-enfermaria montado no apartamento da prima Judite. Tia Edite viveu os últimos tempos sofrendo com as doenças inevitáveis da velhice, mas em relativa serenidade, no aconchego da família. Ela alternava momentos de lucidez com outros em que viajava no tempo da sua longa existência, recordando antigas rezas e canções ou conversando com seus amados que já tinham partido. Pele alva, mãozinhas encarquilhadas pelo tempo, tinha lindos olhos claros que nos encaravam com imensa doçura.

Nunca vou esquecer das férias de infância que eu passava no sítio do Sabiá, em Russas. Aquele cenário de caatinga cearense faz parte de mim. Eu brincava entre os pés de carnaúba, corria atrás das galinhas-de-angola e admirava os cachorros de cabeça grande tangerem o gado pro curral, comandados pelo tio Raimundo Cláudio. De chapéu preto, magro, forte e calado, sempre trabalhando numa coisa ou outra, tio Raimundo Cláudio emanava uma energia silenciosa que combinava demais com o lugar. A água vinha de um riacho a alguns quilômetros, trazida em barricas pelos jumentos. Não havia luz elétrica e nenhum vizinho ao alcance da vista, só um enorme pátio com mato ressecado e a casinha de taipa abandonada ao lado, onde ela os irmãos tinham nascido. Enormes pés de tamarindo faziam a gente apertar os olhos ao olhar pra cima, seus galhos mais altos se misturando com as nuvens flocadas. Sol de torrar, banho de cuia. Depois das três da tarde, pontual, chegava o Vento Aracati pra refrescar a alma dos viventes.

Quando anoitecia, tia Edite acendia um lampião que enchia o velho casarão com cheiro de querosene e produzia um jogo impressionante de luz e sombras. A gente ensaiava a fuga, mas sabia que era inevitável: ela nos arrebanhava todos pra rezar o terço na calçada, em tamboretes e cadeiras de balanço. Eu contava os minutos pra acabar logo a reza, mas aquela ladainha era também hipnotizante, fazia a gente dar um curioso mergulho em si mesmo – anos depois, quando aprendi o que era mantra, me lembrei disso. Depois seguíamos pelo corredor comprido até a cozinha, nos fundos, e íamos jantar – comida simples, mas sempre gostosa. Às vezes aparecia uma visita que amarrava o cavalo na árvore da frente e sentava pra bater papo. Aí ficávamos ouvindo as conversas dos adultos: noivas que fugiram, bailes, crimes; comentários sobre a seca; anedotas, histórias de assombração. No céu, uma imensidão de estrelas, a não ser quando era lua cheia, outro espetáculo mágico.

Tia Edite era rainha absoluta de seus domínios, respeitadíssima por todos – e fazia um lindo par com tio Raimundo Cláudio. Ah, eu adorava as férias no Sabiá. Aos meus olhos de sete anos, tudo aquilo me parecia grandioso. Já se vão quase quarenta anos. Muita coisa mudou, outras, nem tanto. A propriedade hoje tem luz elétrica e bomba d´água, mas continua sem vizinhos próximos – e as antigas fotos de família continuam ornando as paredes. A casa de taipa onde tia Edite e os irmãos nasceram não existe mais, desabou de velhice. Permanecem de pé os carnaubais e continuam por lá as misteriosas inscrições rupestres. Os rios secos ainda transbordam na estação das chuvas, isolando a propriedade. Os pés de tamarindo também resistem ao tempo – devem ter saudade daqueles dois meninos, Janes e Jacó – meu pai e meu tio -, que subiam até os galhos mais altos pra se esconder da mãe quando aprontavam alguma presepada. Tio Raimundo morreu faz tempo e a família mora em Fortaleza. Lá vive só o primo Cláudio, poeta meio ermitão que cria uns sete gatos, faz seu próprio queijo e com quem gosto demais de prosear. Adeus, tia Edite, e obrigado por ter existido.

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5 Responses:

  1. Em 31/01/12, 17:41, Fernanda disse:

    Obrigada Dauro pela homenagem, me emocionei muito com texto, a dor da falta dos meus avós junto com a dor da saudade da minha terra, os quais estão descritos lindamente por você nesse texto. Muito obrigada.

  2. Em 31/01/12, 17:03, André Veras disse:

    Descanse em paz, Tia Edite : a senhora está em boa companhia, com tia do Céu, tio Jacó e papai Janes !!!

  3. Em 31/01/12, 10:16, Ilka disse:

    Que doces lembranças Dauro, me emocionei com o texto, com a homenagem… Linda!!
    Aproveito para desejar um aniversário iluminado, uma nova idade repleta de dias e horas vividas intensa e calmamente, com saúde, amor, paz. Um grande abraço. Você é uma figura e tanto, ou como diz o Rodrigo (meu filho) um adesivo dos melhores.

  4. Em 31/01/12, 08:59, Carlos Paniz disse:

    Grande Dauro, não é de hoje q admiro este texto. Assim acabei tomando conhecimdnto do niver. Parabéns, camarada, Saude, Sorte e Paz neste coração.

  5. Em 31/01/12, 08:49, Fabricio disse:

    Lindas lembranças, lindo texto. A propósito, fazes aniversário hoje, não? Parabéns! Saúde, paz e tudo de bom aí!


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