07
Jun10
Anotações de leitura: organizar a memória
Entre a ausência de vestígio e seu excesso, a fixação dos instantes fortes e raros transforma o tempo longo do acontecimento num tempo curto e denso: o do advento estético. Trata-se de, com longas durações, produzir emoções breves e tempo concentrado no qual se comprima o máximo de emoções experimentadas pelo corpo. Um poem bem-sucedido, uma foto expressiva, uma página que fica supõem a coincidência absoluta entre a experiênca vivida, realizada, e a recordação reativada, sempre disponível não obstante o passar do tempo. De uma viagem só deveriam restar uns três ou quatro sinais, cinco ou seis, não mais que isso. Na verdade, não mais que os pontos cardeais necessários à orientação.
Michel Onfray, Teoria da viagem, p. 53.
31
May10
Leituras em família
Estamos vivendo uma temporada maravilhosa aqui em casa: o despertar da paixão pela leitura nos dois meninos, em diferentes fases de desenvolvimento – alfabetização e pré-escola. É uma onda boa que chega de mansinho, sem sobressaltos, sem lembrança exata de quando começou, assim como a mudança das estações. Acontece com uma simplicidade que encanta. Às vezes me pego encarnando o papel de pai típico, ao pedir pro Miguel apagar a luz do quarto que é hora de dormir (na real sempre fui flexível com isso, acho que a hora ideal é quando dá sono, mas o dormir muito tarde tem suas inconveniências práticas). E ele, sem tirar os olhos do mangá do Naruto que lê na cama, responde, “Espera um pouco”. Debruçado no tapete, Bruno desenha letras aparentemente ao acaso, mas que pra ele fazem todo sentido. Depois recorta papeizinhos e cola com fita adesiva pelas paredes. Às vezes simplifica o processo e escreve com caneta diretamente nelas.
Os sinais se multiplicam, sutis e eloquentes. Há cada vez mais gibis da Turma da Mônica no quarto deles e no banheiro. Nossas visitas a bibliotecas e livrarias são um programa muito apreciado, comparável a ir aos parquinhos ou à praia. Aquela bagunça de livros parcialmente lidos pelos cantos da casa já não é mais privilégio dos adultos. Uma cena bonita de se ver à noite é Miguel lendo livros em voz alta pro Bruno na cama. A tevê tem deixado de oferecer tantos encantos e fica cada vez mais tempo desligada. O segredo disso tudo? Não há segredo, esse é o fato. É o bom e velho método da educação pelo exemplo. Crianças que têm pais leitores tendem a se tornar boas leitoras. Esta é uma das heranças mais preciosas que podemos deixar pra eles.
26
May10
E por falar em camarão…
…recebi esta agora por e-mail do Celso Vicenzi.
A festa“Estava suave o sol, o ar limpo e o céu sem nuvens. Afundado na areia, um caldeirão de barro fumegava. No caminho entre o mar e a boca, os camarões passavam pelas mãos do Zé Fernando, mestre de cerimônias, que os banhava em água-benta de sal e cebolas e alho.Havia bom vinho. Sentados em roda, amigos compartilhávamos o vinho e os camarões e o mar que se abria, livre e luminoso, aos nossos pés.Enquanto acontecia, essa alegria estava já sendo recordada pela memória e sonhada pelo sonho. Ela não terminaria nunca, e nós tampouco, porque somos todos mortais até o primeiro beijo e o segundo copo, e qualquer um sabe disso, por menos que saiba.”Eduardo Galeano, escritor uruguaio.
26
May10
Crime e castigo, camarão e cuscuz
Ontem foi dia de boas aquisições livrescas. Comprei por impulso na banca de revista o clássico Crime e Castigo, de Dostoievski, por R$ 14,90. Mais barato que meio quilo de camarão graúdo. Ao pensar nisso, eu passava na frente duma peixaria. Parei e comprei camarão, que preparei com cuscuz pro jantar.
Ganhei da Laura Teoria da Viagem, de Michel Onfray (já escrevi aqui sobre outro livro desse filósofo francês), que o Fabrício Boppré tinha me indicado. E ela comprou pros meninos, num balaio de promoções da Livros & Livros, um de Manoel de Barros. Já temos o que fazer nos intervalos dos jogos da Copa.
12
May10
Piada pronta da vez: segurança divina
Esta semana vi no vidro traseiro de um carro da segurança da UFSC um adesivo em que faltavam duas letras. Lia-se: “Grupo Tático de Orações Especiais”. Com o número crescente de assaltos e arrombamentos no campus, acho que estão precisando mesmo de uma forcinha lá do alto.
12
Apr10
Lido & Leno: China, resenhas, imigrantes…
Em março encarei dois livros bem interessantes enquanto preparava um artigo para a edição 16 da Revista do Observatório Social: China: uma nova história (John King Fairbank e Merle Goldman), e China: radiografía de una potencia en ascenso (Romer Cornejo, coord.). Como o tempo era escasso pra deglutir os dois tijolos, precisei fazer uma leitura transversal de ambos, principalmente do primeiro, em que saltei alguns séculos (não sem certo remorso, logo deixado de lado ao lembrar dos direitos inalienáveis do leitor) pra me dedicar com mais detalhe aos tempos recentes. O segundo, da Editora El Colégio de México, é em espanhol e reúne artigos de especialistas em diversas áreas. Muito legal pra quem se interessa por geopolítica, relações internacionais, minorias étnicas, questões de gênero e combate à pobreza. Um dos artigos, escrito por Xulio Rios, aborda as relações entre China e Taiwan, tema que me atrái desde que tive a oportunidade de conhecer a ilha asiática em 1993.
Nos intervalos, me deliciei com Nick Hornby e seu Frenesi Polissilábico, que ganhei do cumpay Frank Maia. O escritor inglês reúne uma série de resenhas literárias que publicou em uma revista americana. Fiel à sua mania revelada em Alta fidelidade, no início de cada artigo ele faz duas listas: a dos livros comprados e a dos livros lidos no mês. Não é o filé de Hornby, mas mesmo assim, valeu encarar. São resenhas bem humoradas e cheias de tiradas espirituosas sobre a arte (ou vício) de ler, além de ótimas dicas, apesar de quase sempre restritas ao universo anglo-americano. A maioria dos livros e autores que ele cita, eu nunca tinha nem ouvido falar. Mas Hornby é simpático o bastante pra nos deixar bem à vontade quanto à nossa ignorância. Taí um cara com quem eu gostaria de tomar uma Guiness ou uma caipirinha. Se você é viciado em livros, recomendo o Frenesi, mas se ainda não leu Hornby, melhor começar com Um grande garoto ou Alta fidelidade.
Há poucos dias terminei A síndrome de Ulisses, do colombiano Santiago Gamboa. Aborda a vida de imigrantes ilegais. É a história de um colombiano que tenta ser escritor em Paris dos anos 90, em meio ao maior perrengue de grana, tendo que lavar pratos num restaurante coreano e fazer bicos de professor de línguas pra sobreviver. Ele faz amizade com vários imigrantes que, como ele, vivem no submundo parisiense: uma prostituta romena, um estudante marroquino, um norte-coreano com quem divide a pia do restaurante e outros. Pelo caminho, ele mata o tempo trepando com várias mulheres, investigando sobre um compatriota desaparecido, tentando superar o fora da ex-namorada espanhola e reescrevendo um romance ruim. Um dos pontos altos é a série de papos literários que ele tem com os amigos árabes e com escritores latino-americanos. Também é interessante a forma como, em determinados momentos, ele passa a narrativa em primeira pessoa aos outros personagens. Achei meio mal-amarrado em alguns trechos e foi inevitável compará-lo desfavoravelmente a outros autores que escreveram sobre a vida dura de Paris, com absoluto domínio da narrativa (Henry Miller, Paul Auster). De qualquer forma, a escrita é coloquial, flui bem e prende a atenção.
Anteontem comecei Um adivinho me contou, de Tiziano Terzani, enfaticamente recomendado pela @ladyrasta e que a Laura encontrou por R$ 9,90 num balaio de promoções. É o relato da experiência que esse jornalista italiano viveu ao passar um ano inteiro sem viajar de avião, se locomovendo entre Ásia e Europa por terra e mar. Um adivinho havia previsto que ele poderia morrer se voasse em 1993, e de fato ele se salvou de um acidente aéreo (eu também, quando era criança). Terzani questiona o modo de vida consumista, apressado e cético da cultura ocidental. As primeiras páginas já me fisgaram de jeito.
26
Mar10
A vida dupla de Vinicius de Moraes
Recebi do Fernando Evangelista e compartilho.
Ganhei da Ju o livro Encontro/ Vinicius de Moraes, organizado pelo Sergio Cohn e pela Simone Campos. Foi publicado pela azougue editorial. Nunca tinha ouvido falar. O livro reúne entrevistas concedidas pelo Vinícius de 1967 a 1979. A primeira, de 1967, foi feita por Otto Lara Resende, Lúcio Rangel, Ricardo Cravo Albim e Alexy Viany. Olhem só a turma…
Lá pelas tantas, ele fala que durante o começo da juventude vivia entre duas turmas. Uma da praia, do esporte; e outra que era da literatura e da música.
E ele tinha vergonha de falar das coisas de uma para a outra.
“Eu levava sempre essa vida dupla. Com os amigos da praia, freqüentava os prostíbulos da Lapa, da rua Conde de Lage. Tudo isso, para a turma da literatura, era secreto. Mas também ocultava algumas coisas dos amigos da praia.
Um amigo desse grupo da praia, chamado Paulão, era um oligofrênico total, um sujeito fortíssimo. Nós fazíamos jiu-jitsu com o Hélio Gracie. Um dia, na volta do treino, ele ficou me olhando muito esquisito no ônibus. Era um olhar de raiva e desconfiança, uma coisa muito perturbadora. De repente, porque não tinha escolha mesmo, perguntei para ele: o que está acontecendo? Por que você está me olhando assim?
E ele respondeu: é que me contaram que você anda escrevendo poesia. É verdade? E eu respondi: euuuuuuuuuuu?”
abraços,
fernando
08
Mar10
Cortázar e o esquecimento de Éden
Uma anotação de leitura que reencontrei num e-mail enviado em 2007.
Nos cafés recordo-me dos sonhos, um no man´s land suscita o outro; agora mesmo estou recordando mais um, mas não, recordo apenas que devo ter sonhado algo de maravilhoso e que no final sentia-me como que expulso (ou fugindo, mas à força) do sonho que irremediavelmente ficava atrás de mim. Não sei, inclusive, se uma porta se fechava atrás de mim, creio que sim; na realidade, estabelecia-se uma separação entre o já sonhado (perfeito, esférico, concluído) e o agora. Mas eu continuava dormindo, também sonhei com essa expulsão e a porta se fechando. Uma única e terrível certeza dominava esse instante de trânsito, dentro do sonho: saber que irremissivelmente essa expulsão continha o esquecimento total da maravilha prévia.
(…)
Tudo terá, imagino, uma raiz edênica. Talvez o Éden, como dizem por aí, seja a projeção mitopoética dos bons momentos fetais que pervivem no inconsciente. De repente, compreendo melhor o gesto de Adão de Masaccio. Cobre o rosto para proteger sua visão, o que foi seu; guarda nessa pequena noite manual a última paisagem do seu paraíso. E chora (porque o gesto é também o que acompanha o pranto) quando entende que tudo é inútil, que a verdadeira condenação é aquilo que já está começando: o esquecimento do Éden, ou seja, a conformidade bovina, a alegria barata e suja do trabalho e o suor na testa e as férias pagas.
Julio Cortázar, o Jogo da Amarelinha, cap. 132
08
Feb10
Migração em andamento: resenhas
Tenho aproveitado umas horinhas livres pra fazer aos poucos a migração do blog antigo pra este, com a ajuda inestimável do desenvolvedor web Fabrício Boppré, voluntário na empreitada do novo DVeras em Rede. Neste fim de semana, salvei diversas resenhas de livros que estavam dispersas no Blogger, em Googlepages e em outros sites, reunindo-as em páginas novas no WordPress. Uma parte delas foi escrita em 2001 quando eu fazia frilas para a Editora Rocco – são, portanto, resenhas-releases, mas selecionei só os textos sobre livros de que realmente gostei e recomendo. Entre meus favoritos, As consolações da filosofia, de Alain de Botton, e A política do rebelde – tratado de resistência e insubmissão, de Michel Onfray.
Há também algumas resenhas que bloguei mais recentemente, como as impressões sobre e o livro de contos Meias vermelhas & histórias inteiras, de Marcos Donizetti, e sobre o livro de poemas Os mortos na sala de jantar, de Ademir Demarchi, no início de 2008. Falta ainda compilar muita coisa, não há pressa. Penso em também reunir anotações de leitura, posts em que reúno trechos que me marcaram em diversas obras. Em mudança de pobre, sempre se perde alguma coisa pelo caminho. Marquei bobeira ao não ter salvado os textos que estavam arquivados na extinta Geocities. Cheguei a recuperar alguns usando o Internet Archive, um fantástico “túnel do tempo” que tenta preservar a memória da grande rede – mas não faz milagres.
Enfim, continuamos em obras. Enquanto não volto a postar com mais regularidade, talvez algumas dessas dicas de leitura possam ser úteis. Deixo com você três consolações da filosofia como degustação para o livro de Alain de Botton, que continua tão atual quanto Epicuro, Sêneca e Nietzsche:
Epicuro e sua filosofia da busca de felicidade pelo prazer são um alento para quem tem pouco dinheiro. Segundo o epicurismo, a felicidade é relativamente independente dos bens materiais. Os ingredientes essenciais para uma vida agradável são a amizade, a liberdade e a reflexão serena sobre as principais fontes de ansiedade – morte, doença, fome, superstição.
Consolação para a frustração aborda a vida de Sêneca, cuja obra é permeada por uma única tese: a de que suportamos melhor as frustrações para as quais nos preparamos e somos atingidos principalmente por aquelas que menos esperamos. O filósofo romano propôs que se tenha sempre em mente a possibilidade de uma tragédia e que não se deve surpreender com nada: “O que não pode ser modificado precisa ser suportado”.
…
Consolação para as dificuldades resgata as idéias de Friedrich Nietzsche, para quem é impossível atingir uma vida plena sem passar por grandes períodos de dificuldade. Nietzsche utilizava uma analogia com a jardinagem para ressaltar a importância da valorização dos elementos negativos da vida humana: “Se fôssemos ao menos terrenos férteis, não permitiríamos que nada se tornasse inútil e veríamos em cada acontecimento, em cada coisa e em cada homem um adubo bem-vindo”.
21
Jan10
S.O.S. Barca dos Livros
Recebi hoje uma preocupante carta aos apoiadores, leitores e amigos da Barca dos Livros. Essa encantadora e aconchegante biblioteca, que fica na Lagoa da Conceição, está desde outubro de 2009 sem patrocínio de órgãos públicos e de empresas privadas. Em dezembro, dispensou todos os funcionários contratados e vem sobrevivendo com o apoio do trabalho de voluntários. Fico estarrecido (mas não surpreso) com o descaso dos donos do poder para com a educação e a cultura, numa cidade que busca ser reconhecida como referência turística internacional. Premiado pelo seu caráter inovador, o projeto da Barca envolve diversas atividades de incentivo à leitura de crianças, adolescentes e adultos. Saraus literários, passeios de barco com contações de histórias… E um acervo com mais de 8 mil livros de alta qualidade à disposição do público, gratuitamente. Tudo isso está ameaçado pela falta de continuidade nas políticas de patrocínio dos governos e das empresas. Alô Eletrobrás, Eletrosul, Tractbel, BRDE, Badesc, Ministério da Cultura, Funcultural, Governo de Santa Catarina! A Barca dos Livros é uma ideia boa demais pra ser abandonada.
p.s.: A administração da Barca dos Livros pede aos apoiadores a doação de R$ 10 para ajudar a manter a biblioteca. Depósitos podem ser feitos no Banco do Brasil, agência 3185-2, conta 13.058-3, CNPJ 06022478/0001-07, em nome da Sociedade Amantes da Leitura.








