24
Sep08
Coleção de negativas (2)
Yoani Sanchez é uma personalidade admirável. Sua crônica eloqüente do cotidiano em Cuba, crítica sem perder o bom humor, foi amplificada de tal forma pela blogosfera que a mera negação de liberdade pra seu corpo cruzar fronteiras passa a ser de uma bizarrice cruel, inútil e burra. O sorriso dela, implícito em seu texto, me lembra Thoreau em Desobediência Civil, no trecho sobre a noite que ele passou na prisão por se recusar a pagar impostos que financiavam a guerra ao México e o regime escravocrata:
“Não pude deixar de sorrir perante os cuidados com que fecharam a porta e trancaram as minhas reflexões – que os acompanhavam porta afora sem delongas ou dificuldade; e o perigo estava de fato contido nelas. Como eu estava fora do seu alcance, resolveram punir o meu corpo; agiram como meninos incapazes de enfrentar uma pessoa de quem sentem raiva e que então dão um chute no cachorro do seu desafeto. Percebi que o Estado era um idiota, tímido como uma solteirona às voltas com a sua prataria, incapaz de distinguir os seus amigos dos inimigos; perdi todo o respeito que ainda tinha por ele e passei a considerá-lo apenas lamentável.”
24
Sep08
Anotação de leitura: Thoreau e a máquina
(…) Se a injustiça é parte do inevitável atrito no funcionamento da máquina governamental, que seja assim: talvez ela acabe suavizando-se com o desgaste – certamente a máquina ficará desajustada. Se a injustiça for uma peça dotada de uma mola exclusiva – ou roldana, ou corda, ou manivela -, aí então talvez seja válido julgar se o remédio não será pior do que o mal; mas se ela for de tal natureza que exija que você seja o agente de uma injustiça para outros, digo, então, que se transgrida a lei. Faça da sua vida um contra-atrito que pare a máquina. O que preciso fazer é cuidar para que de modo algum eu participe das misérias que condeno. (…)
Henry David Thoreau, A desobediência civil, 1848.
17
Sep08
Primeiras letras
Miguel começou a escrever. Ele pede pra gente dizer uma palavra e soletrar. Vai então colocando letra por letra no papel, em maiúsculas, com capricho. Parece que tou me vendo: era bem assim que eu fazia aos cinco anos de idade, em Manaus, num pequeno quadro-negro que meu pai fez pra mim e pro meu irmão. Um universo de maravilhas se abre pra esse menino lindo que um dia desses era um nenenzinho recém-nascido. E agora já consegue redigir cavalo (“é com k?”), ovo, borboleta, gato, azul, mar…
Enquanto isso o Bruno, com a curiosidade de seus dois anos e meio, pega papel e caneta e tenta imitar o mano maior. Uma revista, uma mesa ou uma parede também servem. Aos poucos a casa ganha hieroglifos infantis que os dois espalham com espontaneidade. As canetas desaparecem como que engolidas por um buraco negro. Lembro vagamente de plantar árvores pra compensar o papel consumido nesses momentos mágicos. E rio feito bobo. Emoção de pai que vive das letrinhas, luta com elas, é apaixonado por elas.
12
Sep08
Blip.fm e microcontos musicados
A rede social de música blip.fm é a grande sensação do momento entre meus contatos internéticos. Fui apresentado ao brinquedinho novo há poucos dias e me amarrei. Ao fazer uma busca por palavra-chave de canção ou autor/intérprete, a ferramenta toca a música e você pode comentá-la, criando sua própria “estação de rádio”. Também pode ouvir as seleções que seus contatos estão fazendo e elogiá-los com “props”, espécie de reconhecimentos positivos.
O Alexandre Coluna Extra Gonçalves, ligeiro que só, imaginou várias aplicações possíveis pra essa ferramenta que à primeira clicada parece um divertimento inútil (ah, como são deliciosos os divertimentos inúteis…). Hoje ele publicou mais uma idéia, sugerida pelo Diógenes Fischer. Aí compartilhei uma experiência que fiz nesta manhã: publicar microcontos musicados, em que as músicas têm vínculo com o conteúdo ou o clima da narrativa.
Alexandre foi adiante. Escreveu um p.s. sobre isso e testou o embed do blip.fm, publicando em seu blog um microconto meu musicado por Gilberto Gil – minha escolha da música foi por causa do “tempo” que tá na micronarrativa, mas veio a calhar, porque Gil tem tudo a ver com as idéias de copyleft, creative commons, combinações sinestéticas. Aí vai o meu teste, com mais um baiano (clique no play para ouvir).
(Repetindo a dica do Alexandre: para “pegar” o código embed de uma música é só clicar em “posted on…” – abaixo do nome da música. Será aberta uma página só com a música e com o código embed disponível.)
12
Sep08
Oficina de Conto, primeiro dia
Ontem foi o primeiro dia da Oficina de Conto que a Academia Catarinense de Letras está promovendo no Centro Integrado de Cultura. Achei o formato meio cansativo – a tradicional fórmula de longas exposições, seguidas de debate rápido, que termina rendendo menos do que poderia. Mas sempre se aprende e se revê. O professor Lauro Junkes falou sobre o enredo. A importância do conflito pra mover a história, a tensão que se projeta no leitor. A montagem de ações que forma a sintaxe narrativa. Os princípios de unidade artística: concatenação, verossimilhança, coerência, necessidade. As funções do espaço e da atmosfera na ficção. Cada tópico desses renderia dias inteiros de conversa. Falou também sobre a diluição das fronteiras rígidas entre as diferentes formas de expressão literária: crônica, conto, poema, novela, romance. E fez uma recomendação óbvia, mas muitas vezes esquecida pelos aspirantes a contista: ler os mestres, ler muito. E praticar.
Em seguida os escritores Silveira de Souza e João Nicolau Carvalho falaram sobre seus processos de criação. Gostei especialmente da apresentação de Silveira de Souza, um velhinho simpático e tímido que escreve relatos muito bons. Consultando anotações no papel, ele nos levou ao túnel do tempo de suas memórias de criança, quando descobriu o encantamento da leitura nas obras de Monteiro Lobato, Júlio Verne e depois, Maupassant, Poe, Flaubert, Machado de Assis, Chekov. Lembrou da mesa em que se reunia à noite com os pais e as irmãs pra leituras em voz alta. Contou que dá bastante importância ao ritmo e costuma se inspirar em outras formas de expressão artística, como a música e a pintura. Recordou-nos do ensinamento de Poe, que aponta três características importantes para o conto:
- A narrativa deve provocar no leitor um efeito pré-determinado.
- Deve-se excluir tudo o que não contribui para tal efeito.
- A narrativa deve ser curta, mas não a ponto de impedir que se atinja tal efeito.
João Nicolau Carvalho contou da influência que as histórias familiares tem sobre sua obra, em especial de seu trisavô e seu bisavô longevos. Recordou os tempos de estudante no sul de Santa Catarina e também os de jornalista no Rio de Janeiro, quando, inspirando-se em ícones como Hemingway, aprendeu a limar os excessos no texto. Disse que alguns contos seus surgiram de matérias jornalísticas recusadas pelos editores. Que escreve bem devagar e que perdeu dezenas de contos na famosa enchente que arrasou Tubarão na década de 70. Comentou sobre seu flerte com o realismo fantástico, questionando o cânone da verossimilhança. Sobre seu estilo de trabalho, contou que não faz esquemas antes de começar a construir uma narrativa. Em geral parte de um insight, escreve a história inteira e a guarda na gaveta por alguns meses. Depois retoma o texto e o vai esmerilhando aos poucos até ficar pronto.
p.s.: Ontem fiz um exercício de microconto, mas não sei se me atrevo a mostrá-lo aos acadêmicos. Talvez comentem que “é uma boa idéia a ser desenvolvida”… Enquanto pensam “que sujeito mandrião”. Provavelmente têm razão nos dois pontos
p.s.2: Falar em mandrião, veja que bela crônica da Regininha!
10
Sep08
Oficina de conto
Regininha dá o toque e passo adiante. A partir de amanhã, em quatro encontros às quintas-feiras das 17h às 19h30, no auditório da Academia Catarinense de Letras, vai se realizar uma oficina de contos. Oportunidade boa pra quem se interessa por literatura e quer ampliar os horizontes trocando idéias com profissionais do ofício e fazendo exercícios práticos.
06
Sep08
Partidas: Fausto Wolff
Foi-se o grande escritor Fausto Wolff. Sempre tive a impressão de que teríamos nos entendido muito bem numa mesa de bar ou numa correspondência jornalístico-literária. Fica pra outra.
p.s.: Há uma história interessante relacionada a Fausto, que ele conta em Confissão de um reles plagiário. Curioso como na Wikipedia isso aparece com tanto destaque quanto seus méritos.
16
Aug08
Bilica faz um ano
Hoje é aniversário de um ano da Bilica – Biblioteca Livre do Campeche, em Floripa. O projeto nasceu do esforço de um grupo de voluntários do bairro pra criar um espaço de difusão da leitura e da cultura. A Bilica tem uma boa quantidade de bons livros sobre os mais variados temas pra crianças e adultos, doados pela comunidade. Também abriga oficinas de música, conversação de inglês e espanhol e outras atividades. A festa teve contação de histórias pra crianças, pipoca, bolo e música ao vivo. Aproveitamos pra fazer nosso cadastro, que dá direito a pegar até três livros por vez por quinze dias, renováveis por mais quinze. Tudo de graça. Quer conhecer? Fica aqui.
p.s.: A Bilica precisa de voluntários pra que possa ficar mais tempo aberta. Também seria maravilhoso se alguma associação (digamos, a dos funcionários do Besc, que fica logo ali) pudesse ceder espaço ocioso pra que a biblioteca crescesse. Quem sabe um contrato de comodato, como foi feito com o terreno que abriga a Rádio Campeche. Fica a sugestão.
14
Aug08
Mais dez livros sobre jornalismo investigativo
A lista de Rogério Christofoletti é bem interessante. Desses, li só Meninas da noite, bela reportagem de Gilberto Dimenstein sobre exploração sexual de crianças e adolescentes; e Fábrica de notícias, de Günter Wallraff, sobre como o jornal sensacionalista alemão Bild falsifica reportagens (quando será que um Wallraff brasileiro vai contar os bastidores da Veja?). Vi o filme baseado em um dos livros, Todos os homens do presidente, sobre o escândalo político que levou à queda de Nixon.
12
Aug08
Dez livros sobre jornalismo investigativo
Um estudante pediu minha opinião sobre meus livros preferidos de jornalismo investigativo, pruma matéria que vai fazer sobre a lista dos 10+. Acho que dizer “jornalismo investigativo” é quase uma redundância. A rigor, todo jornalista que se dispõe a ir além do trivial está sendo investigativo, mesmo que o objeto de sua história não seja um caso de crime ou corrupção. Mas ate entendo a expressão. É uma forma de qualificar uma prática profissional que, no cotidiano, anda desgastada pela mediocridade.
Investigativo ou não, o importante é ter sensibilidade pra ver, coragem pra tirar a bunda da cadeira e bom senso pra voltar vivo e contar uma boa história. A coragem a que me refiro pode ter várias formas. Física, moral. Oriana Falacci, por exemplo, no seu Um Homem, construiu um manifesto pela liberdade sem o pejo de assumir que teve um profundo envolvimento emocional com seu personagem. Bem, taí minha lista – nem todos os autores eram propriamente pessoas de bom senso, mas tiveram a sorte de viver pra contar. Vários conseguiram transcender o jornalismo e suas obras podem ser chamadas, sem nenhum favor, de literatura.
- Rota 66, de Caco Barcellos.
Investigação corajosa sobre um tema crucial pra sociedade brasileira, a violência policial.
- Abusado, idem.
Belo perfil de um personagem contraditório e interessantíssimo. Uma aula de jornalismo.
Reportagem ou romance semi-autobiográfico? A história do ativista grego que passou anos na prisão e não se curvou é encantadora. Um mergulho na complexidade do ser humano.
- Kaputt, de Curzio Malaparte
Um dos meus favoritos sobre guerra. Também pode ser lido como reportagem. O jornalista conseguiu salvar pra posteridade momentos trágicos e líricos da campanha alemã na Rússia.
Um clássico. A construção dos personagens e do clima é primorosa.
Grande livro sobre os bastidores da conquista espacial, um tema que sempre me interessou.
Crítica social aguda ao modo como a sociedade alemã trata os imigrantes. O recurso de se disfarçar foi eticamente justificável. A reportagem, tal como foi contada, não poderia ter sido feita de outro modo.
Livro intenso sobre a loucura da guerra do Vietnã. Talvez não se encaixe na definição tradicional de jornalismo investigativo, mas sem dúvida o autor precisou sair da zona de conforto pra compartilhar o que viu.
- México rebelde, de John Reed. Grande retrato da revolução mexicana. Uma cena que guardo desse livro é o autor correndo de uma frente a outra da batalha, sob o risco de levar um balaço, pra ouvir “o outro lado”.
- Dez dias que abalaram o mundo, idem. Um retrato da revolução comunista na Rússia. Tem trechos chatíssimos, mas conseguiu reproduzir muito bem o clima de agitação da época.








