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Dec

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Minhas impressões sobre Oração do amor selvagem

Ivo Muller e Chico Diaz. Crédito: Sabrina Bertolini

Ivo Muller e Chico Diaz. Crédito: Sabrina Bertolini

Não sou crítico profissional de cinema. O que sei é quando gosto ou não gosto de um filme, embora a maior parte dos motivos pra isso provavelmente esteja além da avaliação racional. Se gosto, recomendo. Se não, fico na minha, ou em casos extremos, comento com os mais chegados — acredito que mesmo um filme ruim pode ensinar. De tanto vê-los desde os sete anos de idade e por também trabalhar com roteiros, aprendi uma coisinha ou outra sobre a combinação de técnica e arte envolvida na construção de uma obra audiovisual. Assim, posso ir além da platitude de dizer que gostei “porque sim”, como martela o bordão daquela cerveja ruim. Pois bem, gostei muito de Oração do amor selvagem, dirigido por Chico Faganello, que estreou semana passada. Compartilho minhas impressões, consciente de que é só uma opinião e que, mais seguro que confiar na minha, é melhor você ver o filme e formar a sua.

Antes de prosseguir, aviso que minha avaliação é suspeitíssima, pois sou amigo do Chico há trinta anos. Já fizemos várias parcerias profissionais, conheço seu método de trabalho e vi filmes dele que não gostei, ou não entendi direito. Assim, me sinto bem à vontade pra afirmar que esta obra é uma mostra inequívoca do seu amadurecimento como cineasta. Oração do amor selvagem faz uma reflexão porrada sobre intolerância religiosa em uma pequena comunidade do interior de Santa Catarina, que poderia ser qualquer lugar do mundo. É contada com sensibilidade, roteiro competente, atores bons e entrosados, fotografia e trilha sonora marcantes, áudio de qualidade. Saí impactado da sala de cinema e decidi esperar dois dias antes de escrever, pra digerir melhor. Nem sempre os grandes impactos são sinônimos de qualidade, já dizia a parede esburacada pra furadeira elétrica. Neste caso, é.

Um dos grandes méritos de Oração é ter conseguido resgatar a química das narrativas contadas ao pé do fogo desde sempre. Sem maneirismos estilísticos. Complexa e cheia de camadas, mas com a simplicidade dos bons causos com cor local e eco universal. A trajetória do caboclo Thiago — incorporado de maneira quase sobrenatural por Chico Diaz — avança num ritmo seguro, que começa lento e vai pegando embalo, nos envolvendo na correnteza. Não é um “filme de autor”. A gente percebe a marca do trabalho de equipe o tempo inteiro, tanto nas vigas-mestras quanto nos detalhes — a camisa puída que o protagonista abotoa, os diálogos e as pausas, os gestos que expressam a dúvida existencial, a busca da felicidade e da paz/redenção. Há um denso subtexto, quase nada está ali por acaso.

Fiquei impressionado com o talento do ator Ivo Müller na interpretação do pastor obcecado pela irmã e pelas ideias distorcidas sobre religião. Antagonista poderoso, é ao mesmo tempo repulsivo e digno de pena. Como bem lembrou a Adriane Canan, embora o filme tenha homens como personagens centrais do conflito, as personagens femininas são fundamentais pra mover esse drama de amor e ódio. Mulheres que buscam a felicidade em meio à repressão. Sandra Corveloni interpreta a viúva Anita e sua bondade ambígua na medida certa. Camila Hubner convence como a irmã do pastor, oscilante entre a castidade e o desejo. A menina Camilla Araújo, que faz a filha de Thiago, é um destaque à parte com aqueles olhos lindos onde cabe um mundo.

Gostei muito da fotografia do Marx Vamerlatti, que aproveitou ao máximo a luz natural, inspirado na pintura de Vermeer e em Sangue Negro de Paul Thomas Anderson, como nos contou no debate mediado por Jose Geraldo Couto, logo depois da sessão. A trilha de Zeca Baleiro e o coral da cidade de Antônio Carlos, onde foram feitas as filmagens, foram vitais pra criar o clima. Minha cena preferida, sem spoiler? A da chuva vista da janela. Não só por ser síntese do espírito libertário do protagonista. É um eco da minha primeira lembrança de infância (e lá se vai o racional pras cucuias). Falhas? Achei a atuação dos policiais pouco convincente e algumas cenas da primeira parte podiam ter sido cortadas sem prejuízo da narrativa — nada que tenha comprometido a verossimilhança ou a qualidade da montagem.

Oração do amor selvagem merece ser visto com atenção. O tema é da hora e é de sempre: a relação do humano com o divino e como isso às vezes descamba para a violência obscena. Adorei ver Santa Catarina retratada com tanta competência no cinema, numa história xucra como a vida e doce como o amor.

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