Posts com a tag ‘coronavírus’

28

Mar

20

Crônicas na quarentena: dia 11

Décimo-primeiro dia da quarentena do coronavírus. Só agora começo este registro. Não sei se vai ser um diário. Talvez um devezenquandário, como tem sido a atualização deste blog há alguns anos desde que as redes sociais nos sequestraram. Os posts em blogs não voltados a propósitos comerciais se tornaram mensagens em garrafas jogadas ao mar. Talvez um dia os bilhetes sejam lidos numa praia distante, mas convém que o náufrago não coloque muitas expectativas, para evitar frustrações. Instalado em minha ilha deserta, escrevo durante a tempestade invisível da Covid-19, que no mundo inteiro já arrasta muitas embarcações para as profundezas. Em um mundo de tanta desigualdade social, os barquinhos de pesca e os veleiros são os mais vulneráveis, mas nem os transatlânticos estão seguros.

Esse início de confinamento foi de ajustes familiares à nova rotina. Como eu já trabalhava em casa há anos, pra mim foi mais fácil, mas a sensação de estar em prisão domiciliar é um tanto sufocante pra quem como eu, adora pedalar e caminhar. Continuamos dividindo os trabalhos domésticos, como sempre. Todos tentamos desenvolver projetos coletivos e individuais para vencer o tédio quando ele tenta se insinuar em nossos espíritos. Tenho estudado programação em Python pelo youtube, divulgado informações de relevância pública pelas redes e lido bastante. No momento estou concluindo o fantástico (literalmente) Murilo Rubião: obra completa e iniciando Manual prático de levitação, de José Eduardo Agualusa – nunca se sabe quando a habilidade de levitar vai ser necessária. Às vezes teclo com amigos e parentes ou fazemos conversas em vídeo.

Começamos uma pequena horta. A cada dia avançamos um pouco. Pela minha janela, enquanto escrevo, vejo duas bananeiras com cachos quase no ponto da colheita. No quintal, ao lado da rede, todos os dias um beija-flor vem fazer sua refeição nas lanternas-japonesas. Ultimamente também temos recebido visitas esporádicas de um sagui adolescente que adora goiabas e não demonstra muito medo dos humanos. As bromélias têm crescido bastante e o limoeiro promete uma safra generosa pra breve. Descrever o ambiente da nossa micro-floresta chega a soar quase uma ostentação agora. Impossível não pensar em como somos privilegiados por dispor de terra pra pisar com os pés descalços, árvores frutíferas, espaço pra se recolher em silêncio. O confinamento pra quem mora numa favela, cortiço ou apartamento minúsculo deve estar sendo de grande sofrimento.

O mundo nunca mais vai ser como antes. Novas formas de organização social e de poder estão brotando como resultado da epidemia, com consequências que nem mesmo com bola de cristal é possível prever. O discurso liberal se tornou repentinamente anacrônico diante da necessidade imperiosa de que os Estados injetem enormes recursos para salvar a economia da bancarrota. A violência e o caos podem estar na esquina, espreitando. Da capacidade de as sociedades e os indivíduos se reinventarem vai depender tanto a sobrevivência individual quanto coletiva. A solidariedade, a cooperação e a colaboração ressurgem como necessidades vitais. Trabalho remoto e ensino a distância vão ganhar força. O mito do desenvolvimentismo, do crescimento a qualquer custo, também deve sofrer um forte abalo. A cabeça roda nas noites de insônia, tentando adivinhar de onde virá o trabalho como autônomo nesse cenário de incertezas. Muitas perguntas sem resposta. Os dois cachorros e a gata ignoram solenemente a pandemia. Seguimos e resistimos.

Bookmark and Share