Microcervejarias ganham escala e novos mercados

Dauro Veras
Para o Valor, de Florianópolis

Emerson Bernardes - Das Bier

Emerson Bernardes da Das Bier: pesquisas na Europa para montar um plano de negócio.

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“A vida é muito curta para beber cerveja ruim”, advoga o cartaz na Cervejaria Sambaqui, localizada no centrinho histórico do bairro Santo Antônio de Lisboa, na capital catarinense. A frase bem-humorada resume uma motivação que tem levado milhares de brasileiros a fabricar a bebida em escala artesanal – em casa, para consumo próprio e dos amigos, ou em microcervejarias, para abastecer o mercado com variedades especiais da bebida alcoólica mais popular do mundo. São Paulo, Rio Grande do Sul, Minas Gerais, Santa Catarina, Paraná e Rio de Janeiro lideram o número de empreendimentos. Nos últimos dez anos, as microcervejarias e a cultura da homebrewing ganharam força no Brasil, graças à internet e à importação de tecnologia dos Estados Unidos, país de longa tradição na área, onde existem 3,2 mil microcervejarias. As brasileiras já são cerca de 200 conforme o governo, 300 segundo o mercado, e estima-se que cheguem a 700 até 2024. Em Santa Catarina, esse renascimento é reforçado pelas tradições dos descendentes de imigrantes alemães. A sinergia com o turismo das festas típicas tem estimulado a atividade.

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Muitos adeptos da produção caseira terminam se transformando em empreendedores. É caso do advogado e mestre em gestão do conhecimento Filipe Costa, que trocou um emprego bem pago em uma empresa de tecnologia pelo desafio de lidar com água, lúpulo e malte de cevada. “Sou um cervejeiro aprendendo a ser empresário”, afirma. “Comecei fazendo em uma panelinha em casa, onde desenvolvi 23 receitas, e a partir de 2012 passei a testar o produto em festas e formaturas de amigos, até lançar a marca Sambaqui no mercado, em abril de 2013”. Hoje o seu negócio inclui dois bares, uma loja de equipamentos e insumos em parceria com a Chopp Alemão Klaus Bier e uma agenda de cursos que ele ministra por todo o país para difundir o ofício. “Como eu não tinha capacidade de investimento, optei por terceirizar a fabricação com um mestre cervejeiro, depois de fazer as receitas quatro ou cinco vezes com ele”, conta o empreendedor. Ele registrou receitas com dois estilos de cerveja: a Blond Ale, típica da Bélgica, com coloração dourada, e a American India Pale Ale (IPA), batizada de Lola Lupulina, por causa do lúpulo que lhe dá gosto amargo. No ano passado, a primeira ganhou medalha de prata em um concurso nacional, no qual não foi concedida medalha de ouro na categoria. Ele dá duas dicas a quem tem interesse na atividade: “Antes de começar, escolha o modelo de negócio correto; e não aposte só na produção, diversifique o mix de produtos”. Diversificação foi também o caminho adotado por Emerson Bernardes, que fabrica a marca Das Bier no município de Gaspar, a 134 quilômetros de Florianópolis.

“Possuímos uma propriedade rural com um pesque-pague e queríamos agregar algo mais ao nosso empreendimento, mas não tínhamos conhecimento sobre o assunto”, recorda. Em 2006, depois de pesquisar na Alemanha, Bélgica, Holanda e República Tcheca e montar um plano de negócio, a família inaugurou a cervejaria. Sua capacidade de produção, que inicialmente era de 8 a 12 mil litros mensais, hoje é de 52 mil litros, fabricados com a ajuda de cinco empregados e distribuídos por dois motoristas. A Das Bier faz 11 estilos de cerveja, incluindo Pilsen natural (sem filtração), Braunes Ale (com traços de chocolate), Weizen (de trigo), Pale Ale (clara) e Stark Bier, de estilo escocês e alta fermentação, que teve a fórmula abrasileirada com rapadura. Bernardes explica que a cervejaria trabalha apenas na modalidade chope, que não passa por pasteurização. Como não contém conservante nem estabilizante, a bebida dura no máximo sete dias fora da geladeira, ou 60 dias se refrigerada. Por isso, o comércio ainda não ultrapassou as divisas catarinenses. “Temos planos de começar a pasteurizá-la no meio do ano que vem e assim ampliar o mercado para outros estados”.

As microcervejarias também têm se mostrado investimentos atrativos para empresários de outros ramos que desejam ter a própria cerveja, mas não pretendem se envolver diretamente nos negócios. Assim surgiu a Schornstein, criada em 2006 pelo proprietário da Cativa Têxtil, Gilmar Sprung, e pelo sócio da indústria de eletroeletrônicos Mueller, Adalberto Roeder. No início, o objetivo era fabricar 5 mil litros mensais para venda em Pomerode, cidade de 30 mil habitantes conhecida como “a mais alemã do Brasil”. A empresa foi crescendo e dois anos depois abriu nova fábrica em Holambra (SP). Hoje a produção mensal de 100 mil litros é vendida por 29 distribuidores em 18 estados e deve dobrar nos próximos três anos. “Temos um projeto de construir uma terceira unidade de produção em Santa Catarina”, informa o diretor da Schornstein, Adilson Altrão. “Estamos estudando a logística para definir o município – provavelmente vai ser à margem da BR-101”. Ele lembra que o lastro financeiro foi fundamental para viabilizar o projeto, pois nos oito anos de existência da empresa, os primeiros sete foram de prejuízo. Em 2014 a Schornstein faturou 82% a mais que no ano anterior e a estimativa para 2015 é crescer entre 70% e 80%.

Confraria promove cursos e festas par divulgar a produção caseira

Carlo Enrico Bressiani, da ESCM: "Não havia formação específica no Brasil"

Carlo Enrico Bressiani, da ESCM: “Não havia formação específica no Brasil”

Formar novos apreciadores do líquido dourado caseiro é o objetivo da Associação dos Cervejeiros Artesanais de Santa Catarina – Acerva Catarinense. Criada há seis anos e filiada à Acerva Brasil, a confraria tem 280 sócios ativos em 11 regionais. Novos simpatizantes são conquistados a cada dia, graças a uma programação eclética que abrange desde festas de rock’n’roll a eventos da tradição germânica, jantares de harmonização, concursos, congressos e oficinas sobre técnicas de fabricação. Mais de mil cervejeiros têm produção caseira no estado, estimam os diretores.

“A gente costuma dizer: beba menos e beba melhor”, orienta o presidente da associação, Cássio Ricardo Marques. Ele cita algumas cervejarias artesanais que se originaram das cozinhas domésticas de seus fundadores, como a Handwerk, de Ibirama; a Kiezen Ruw, de Guabiruba; a Faixa Preta e a Badenia, de Santo Amaro da Imperatriz; o Liffey Brew Pub, de Palhoça; a Cervejaria da Lagoa, em Florianópolis, e outras. “A Acerva Catarinense acaba sendo, por consequência, uma incubadora de empreendedores, embora não tenha nenhum curso voltado para isso; quem tem essa ambição acaba buscando o aprendizado por outros meios”. Blumenau, que promove anualmente a Oktoberfest brasileira, está consolidando seu papel como centro formador de profissionais especializados na área.

Em março, foi inaugurada no município a Escola Superior de Cerveja e Malte (ESCM), primeira instituição da América Latina a abranger ensino, pesquisa e extensão sobre a bebida. “Este mercado é efervescente e não havia formação específica no Brasil”, afirma o diretor Carlo Enrico Bressiani, para quem Santa Catarina está na vanguarda do movimento das cervejarias artesanais. Ele menciona uma pesquisa que apontou crescimento médio de 60% ao ano das vendas em supermercados do estado. Desde a inauguração, 760 alunos já passaram pelos mais de cem cursos oferecidos pela escola. As atividades incluem de seminários rápidos a pós-graduações de um ano e meio, reconhecidas pelo Ministério da Educação, além de cursos sobre ingredientes.

Há quatro perfis principais de alunos, relata o diretor. O primeiro é o curioso, aquele para quem a cerveja é um objeto de paixão. O segundo é o que fabrica a bebida em casa e busca mais informações para elaborar um produto melhor. O terceiro é formado por profissionais da área técnica – químicos, biólogos, engenheiros de alimentos – que desejam trabalhar no ramo. E, por fim, há os profissionais que já trabalham em cervejarias e estão à procura de uma formação mais sólida. O currículo está fundamentado em três linhas: estudo da produção industrial e caseira; somelieria, que aborda degustação e harmonização; e gestão de negócios.

Inevitavelmente, a ESCM se transformou também em atração turística. A instituição está aberta à visitação gratuita dos que desejam conhecer o processo fabril e as principais escolas e estilos. Há também visitas pagas com mini-curso de degustação. A escola catalogou 326 cervejarias artesanais no Brasil – considerando os negócios formalizados que produzem até 200 mil litros por mês. Algumas são​ conhecidas como “cervejarias ciganas”, pois ​terceirizam a produção de suas marcas em outras plantas industriais. Do total, 36 estão em Santa Catarina, estado com o maior número de empreendimentos cervejeiros per capita.

Dois grandes grupos formam o mercado brasileiro. O das cervejas de massa, com a produção concentrada em quatro grandes indústrias, responde por 96% dos 13 bilhões de litros fabricados por ano. A fatia restante é das cervejas especiais, que incluem as importadas, as fabricadas por grandes empresas e as oriundas de cervejarias artesanais. Bressiani ressalta que os dois grupos não concorrem entre si: “Uma cerveja de massa tem a função básica de refrescar, mas a especial compete mais com o vinho: é para apreciação do sabor, do aroma e de outras características”. Uma das demandas dos profissionais do segmento é a alteração da legislação para permitir o funcionamento dos “bill pubs”, bares que fabricam suas próprias cervejas. “Na Europa e nos Estados Unidos, isso é comum, mas aqui eles entram na categoria indústria e precisam se instalar no distrito industrial”, afirma.

Mudanças na tributação dividem os fabricantes

Adilson Altrão, da Schornstein. Foto: Marta Rocha

Adilson Altrão, da Schornstein. Foto: Marta Rocha

Um acordo firmado em novembro entre o governo e os fabricantes de bebidas frias definiu um novo modelo de tributação sobre o setor, com impactos para as cervejarias artesanais. A proposta é padronizar a cobrança de impostos com a adoção de três faixas: uma para as cervejarias que produzam mais de 10 milhões de litros; a segunda com um desconto de 10% para a produção de 5 a 10 milhões de litros; e a terceira com um desconto de 20% para as que produzam menos de 5 milhões de litros por ano. Na avaliação dos pequenos fabricantes, a medida será benéfica, embora necessite de ajustes. Mas há quem discorde e preveja impactos negativos.

“Teremos aumento de tributação, sem dúvida, mas o lado bom é que, pela primeira vez, o governo reconheceu as microcervejarias e concedeu benefícios fiscais”, comenta o advogado Jorge Gitzler, tesoureiro da Associação Brasileira de Microcervejarias. Para ele, a nova regra – ainda a ser votada pelo Congresso Nacional – é mais justa, pois considera os valores reais de venda dos produtos, ao contrário do sistema atual de pautas fiscais, que leva em conta uma pesquisa da média dos preços de varejo. “Antes o imposto de uma cerveja de R$ 8 era praticamente o mesmo  do imposto de uma de R$ 20, mas agora todo mundo vai pagar pelo valor efetivo de seu produto”.

Na avaliação do diretor da Cervejaria AX Beer e membro da Acerva Mineira, Luiz Vicente Mendes, a mudança pode dar mais vitalidade para o setor ao trazer várias empresas para a formalidade: “Com o fim das pautas, acabam-se as arbitrariedades, as divergências e as injustiças, pois todos passam a pagar o mesmo imposto baseado nos preços praticados”, diz. “Julgo que é o primeiro passo para uma tributação mais justa”. Mendes ressalta que, para fugir do “Custo Brasil”, várias cervejarias decidiram produzir fora do país, o que chega a reduzir seus custos em até 40%. Ele menciona a Wäls, de Belo Horizonte, que fabrica uma linha de produtos nos Estados Unidos, e a Amazon Beer, de Belém, que fez parceria com a fábrica Beer Counter e com a distribuidora World Beer, ambas inglesas.

Nem todos concordam com os benefícios das novas regras. “Estão vendendo a ideia de uma ‘boa notícia’, quando na verdade é uma péssima notícia para 90% das cervejarias artesanais”, critica o diretor da Schornstein, Adilson Altrão. “De fato, o modelo proposto simplifica bastante o procedimento para a apuração dos impostos e, em certa medida, pode ser chamado de ‘mais justo’, pois coloca todas as marcas no mesmo formato de tributação, mas o que está oculto na alardeada ‘redução de impostos’ é que isso beneficia apenas as grandes cervejarias”. Ele estima que a medida levará a um aumento de 100% a 150% nos impostos para a maioria das pequenas empresas do ramo.

O presidente da Associação das Microcervejarias Artesanais de Santa Catarina (Acasc), Edgar de Freitas, lembra que o segmento tem grande importância na geração de empregos diretos e indiretos, por ser um dos principais ícones turísticos no estado. “Em Blumenau, onde moro, a Oktoberfest e outras festas atraem um número incrível de visitantes e movimentam toda a economia – hotéis, bares, restaurantes, agências de turismo e outros negócios”. Uma das reivindicações das empresas do segmento era o enquadramento no Super Simples, mas, por se tratar de bebida alcoólica, isso não foi possível.

Enquanto a nova regra de tributação não é aprovada, as microcervejarias buscam caminhos alternativos para sobreviver à alta carga de impostos e desenvolver novos sabores. A Tupiniquim, de Porto Alegre, produz cervejas colaborativas junto a parceiros como a sueca Omnipollo e a americana Stillwater, com a qual criou a Saison de Caju, à base de caju e manga. Outro nicho de mercado é a fabricação para roqueiros. Mais de 15 bandas e artistas brasileiros têm marca própria, entre elas a Velhas Virgens, de São Paulo, e o cantor e compositor Wander Wildner, que lançou a Labareda – à base de pimenta – com a cervejaria Coruja. Se os fãs estão bebendo menos, não se sabe, mas tudo indica que bebem melhor.

Publicado originalmente no Valor Econômico em 30 de janeiro de 2015.
Fotos 1 e 2: acervo dos entrevistados. Foto 3: Marta Rocha.