Camisinhas da floresta

Uma fábrica de preservativos de borracha natural abastece o Ministério da Saúde e beneficia comunidade extrativistas em Xapuri, no Acre.

Linha de produção da Natex em Xapuri, Acre

Dauro Veras, para o Valor, de Xapuri

Xapuri, terra do líder seringueiro Chico Mendes, é um conhecido símbolo do movimento ambientalista. O que poucos sabem é que esse município de 16 mil habitantes, a 174 km da capital do Acre, Rio Branco, é também um aliado estratégico do programa brasileiro de prevenção à Aids. Em Xapuri está a única empresa do mundo que fabrica preservativos masculinos com borracha natural, produzida de maneira sustentável. A Natex é resultado de um investimento de R$ 20 milhões do governo federal, em parceria com o governo do Acre. Sua produção anual de 100 milhões de camisinhas é toda comprada pelo Ministério da Saúde e corresponde a 20% do total distribuído gratuitamente em campanhas nacionais. A empresa planeja duplicar esse volume até 2015 e exportar para outros países.

Seringueira em Xapuri, Acre“A ideia surgiu em 1999, junto com uma série de políticas públicas que o estado começou a adotar para valorizar os produtos extrativistas da floresta”, conta a diretora executiva da Natex, Dirlei Bersch. O preço pouco atrativo do látex, em função da concorrência asiática e dos seringais de cultivo, era – e ainda é – um desestímulo à atividade. “Na época, houve um forte processo de desmatamento, pois o seringueiro se inspirava no fazendeiro e derrubava árvores para criar gado”, recorda. Em 2006 começaram os testes de viabilidade e em 2008 a fábrica entrou em operação, utilizando tecnologia nacional.

Atualmente, a empresa compra látex de 750 famílias nos municípios de Xapuri, Epitaciolândia, Brasileia, Capixaba e Assis Brasil. A área de produção, de quase um milhão de hectares, abrange 30 seringais na Reserva Extrativista Chico Mendes e em projetos de assentamento agroextrativista. “Compramos o quilo do látex seco por R$ 7,80, bem mais que o valor de mercado” (em torno de R$ 2,80), informa a diretora. Parte do pagamento é complementada pelo governo como contrapartida por serviços ambientais – isto é, o compromisso de manter a floresta intacta. Segunda maior empregadora de Xapuri, atrás apenas da Prefeitura, a Natex tem 170 funcionários – a maioria, filhos ou netos de extrativistas, muitos no primeiro emprego. Um terço começou em serviços gerais e teve ascensão profissional a cargos de liderança.

“A fábrica é de importância incalculável, pois agrega valor à borracha e melhora a nossa renda”, diz o diretor superintendente da Cooperativa Central de Comercialização Extrativista do Acre (Coopeacre), Manoel Monteiro. “Esperamos que, com a duplicação da produção, outras famílias participem do projeto”. Cada família extrativista coleta na floresta, em média, 200 quilos de látex por mês, o que rende em torno de R$ 500 no mercado. Ao fornecer para a Natex, o valor triplica. Os reflexos no padrão de vida incluem o aumento na frequência escolar e a cursos profissionalizantes, melhorias em saneamento, telefonia e eletrificação, e a compra de bens de consumo como motocicletas e eletroeletrônicos. Educação sexual também passou a fazer parte do cotidiano dessas famílias, que recebem orientações sobre planejamento familiar e prevenção de doenças.

A fábrica é um apoio importante ao programa de enfrentamento à Aids do governo federal, considerado referência internacional pela Organização das Nações Unidas (ONU). Hoje o Brasil fabrica 10 dos 21 medicamentos antirretrovirais distribuídos pelo SUS, o Sistema Único de Saúde. Segundo o relatório anual da ONU sobre a epidemia, divulgado em julho, oito milhões de pessoas recebem tratamento em todo o mundo, enquanto, em 2003, eram somente 400 mil. O acesso universal aos medicamentos deve ser atingido até 2015 e parte dessa vitória é creditada ao Brasil. “Uma de nossas prioridades é interromper a transmissão, e a prevenção hoje é o método mais eficaz”, resume o diretor do Departamento de Doenças Sexualmente Transmissíveis, Aids e Hepatites Virais do Ministério da Saúde, Dirceu Greco. “No imaginário popular, quando se fala em Aids, parece que já acabou, mas o vírus está aí”.

Hoje o governo brasileiro é o maior importador internacional de preservativos, comprados principalmente de Tailândia, Índia e Malásia. A diretriz do Ministério é dar acesso fácil, sem burocracia, a quem busca camisinhas em unidades de saúde. Greco informa que está em debate a colocação de parte da produção da Natex no mercado externo, para dar mais visibilidade ao programa brasileiro de prevenção: “Uma possibilidade é a de cooperação com os países africanos”. Há dois meses foi inaugurada em Maputo, capital de Moçambique, uma fábrica de antirretrovirais, com transferência de tecnologia brasileira. Na África do Sul, que enfrenta sérios problemas com o HIV/Aids, 300 mil novos pacientes passaram a tomar antirretrovirais em 2011. Há 1,7 milhão de pessoas em terapia no país.

O know-how para fabricação das camisinhas foi desenvolvido por pesquisadores da Fundação de Tecnologia do Estado do Acre (Funtac), do Instituto Nacional de Tecnologia (INT) e do Instituto de Tecnologia em Fármacos (Farmanguinhos) da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). Como o látex nativo tem alta concentração de elastômeros – substâncias com propriedades elásticas que suportam grandes deformações antes da ruptura -, os preservativos de borracha natural são mais resistentes que os de poliuretano. Em testes de laboratório, suportam 40 litros de volume e 2 quilopascais de pressão, bem acima do mínimo exigido na norma técnica, 18 litros e 1 quilopascal. “Vale ressaltar que os preservativos com ambos os materiais são seguros”, lembra Dirlei.

Em paralelo, o Ministério da Saúde investe no desenvolvimento de dois produtos a partir de oleaginosas amazônicas: um lubrificante natural e um gel retardante para auxiliar no tratamento da ejaculação precoce, disfunção sexual que afeta um em cada quatro brasileiros. Pesquisadores da Funtac trabalham nesses projetos em parceria com colegas da Universidade Federal do Amazonas (UFAM) e da Fiocruz. “O lubrificante está em fase experimental final, faltando apenas o teste clínico de opinião dos usuários; já o retardante aguarda confirmações farmacológicas”, diz a coordenadora do Laboratório de Produtos Naturais da Funtac, Silvia Basso. Em um futuro breve, esses produtos da floresta vão contribuir para o bem-estar e a autoestima de muita gente.

Uma versão condensada desta reportagem foi publicada originalmente no Valor em 24/10/2012, com o título Xapuri se prepara para exportar preservativos.